Autos: 0016178-88.2019.8.13.0529;

Autor: Ministério Público

Acusados: Fernando Ricardo Gimenes e Izaias Ferreira de Paulo

 

 

 

SENTENÇA

 

 

Vistos etc.

 

O Ministério Público Estadual, por seu órgão de execução neste Juízo, ofereceu denúncia em desfavor de Fernando Ricardo Gimenes e Izaias Ferreira de Paulo, qualificados, imputando-lhes os crimes dos arts. 33, caput e 35, da Lei 11.343/06.

Narra à denúncia que no dia 14 de maio de 2019, por volta das 02h10min, em via pública, na Rua Antônio Domingos Júnior, bairro Santo Antônio, em Itaú de Minas/MG, o denunciado Fernando trazia consigo e guardava, com fins de tráfico, 04 pedras de crack e 04 tabletes e 01 porção de maconha. Na mesma data e local, o denunciado Izaias transportava, para fins de tráfico, 01 pedra de crack. Segundo sustentado, ambos mantinham associação para prática reiterada de crimes de tráfico.

Notificação dos acusados (fls. 86 139/140).

Defesas prévias (fls. 141/142 e 157/162).

Ausentes causas de rejeição, foi recebida a denúncia (fls. 163).

Instrução com oitiva de 04 testemunhas (ff. 118/120) e interrogatório dos acusado (fls. 186/188 e 232/233).

Em memoriais (fls. 236/241), o Ministério Público requereu a condenação nos termos da denúncia, ancorada na robustez do quadro probatório, em especial a quantidade de drogas, prova testemunhal e documental (conversas de WhatsApp).

A defesa de Izaias (fls. 246/248) pleiteou absolvição. Subsidiariamente, pelo reconhecimento da forma tentada, com confissão e redução máxima de pena.

A defesa de Fernando (fls. 249/267), preliminarmente, requereu declaração de nulidade desde a prisão em flagrante pelo acesso aos dados do telefone celular sem ordem judicial. No mérito, quanto ao crime de associação ao tráfico, pela absolvição por falta de provas, ou subsidiariamente pela fixação da pena-base no mínimo legal. Quanto ao crime de tráfico, pela absolvição por falta de provas, subsidiariamente desclassificação para o crime do art. 28 da Lei 11.343/06 ou a aplicação do redutor do art. 33, § 4°, da Lei 11.343/06.

 

Vieram-me os autos conclusos. É o relatório.

 

FUNDAMENTAÇÃO

 

Preliminarmente, reconheço a nulidade da prova documental obtida pelo acesso às conversas de WhatsApp do Corréu Fernando, tendo em vista que não houve autorização judicial para tanto.

O sigilo telefônico encontra guarida constitucional (art. 5°, XII, da CF) e legal (art. 1° da Lei 9.294/96 e arts. 3°, II, e 7°, II, da Lei 12.965/14), sendo inviolável, salvo autorização judicial.

É categórica a jurisprudência sedimentada nas 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tema:

 

Sem prévia autorização judicial, são nulas as provas obtidas pela polícia por meio da extração de dados e de conversas registradas no whatsapp presentes no celular do suposto autor de fato delituoso, ainda que o aparelho tenha sido apreendido no momento da prisão em flagrante. Realmente, a CF prevê como garantias ao cidadão a inviolabilidade da intimidade, do sigilo de correspondência, dados e comunicações telefônicas (art. 5º, X e XII), salvo ordem judicial. No caso das comunicações telefônicas, a Lei n. 9.294/1996 regulamentou o tema. Por sua vez, a Lei n. 9.472/1997, ao dispor sobre a organização dos serviços de telecomunicações, prescreveu: "Art. 3º. O usuário de serviços de telecomunicações tem direito: (...) V - à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas." Na mesma linha, a Lei n. 12.965/2014, a qual estabelece os princípios, garantias e deveres para o uso da internet no Brasil, elucidou que: "Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial." No caso, existiu acesso, mesmo sem ordem judicial, aos dados de celular e às conversas de whatsapp. Realmente, essa devassa de dados particulares ocasionou violação à intimidade do agente. Isso porque, embora possível o acesso, era necessária a prévia autorização judicial devidamente motivada. Registre-se, na hipótese, que nas conversas mantidas pelo programa whatsapp - que é forma de comunicação escrita e imediata entre interlocutores - tem-se efetiva interceptação não autorizada de comunicações. A presente situação é similar às conversas mantidas por e-mail, cujo acesso também depende de prévia ordem judicial (HC 315.220-RS, Sexta Turma, DJe 9/10/2015). Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação por voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo a verificação de correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional. Desse modo, sem prévia autorização judicial, é ilícita a devassa de dados e de conversas de whatsapp realizada pela polícia em celular apreendido

STJ, 6ª Turma, RHC 51.531-RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 19/4/2016, DJe 9/5/2016. Informativo 583.

 

Na ocorrência de autuação de crime em flagrante, ainda que seja dispensável ordem judicial para a apreensão de telefone celular, as mensagens armazenadas no aparelho estão protegidas pelo sigilo telefônico, que compreende igualmente a transmissão, recepção ou emissão de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio de telefonia fixa ou móvel ou, ainda, por meio de sistemas de informática e telemática.

STJ, 5ª Turma, RHC 67.379-RN, Rel. Min. Ribeiro Dantas, por unanimidade, j. 20/10/2016, DJe 9/11/2016. Informativo 593.

 

É indiferente a existência ou inexistência de senha no telefone celular, pois a proteção do sigilo decorre do ordenamento jurídico e não da senha.

No caso concreto, as testemunhas policiais alegam que não acessaram o conteúdo no local da abordagem, enquanto o Réu Fernando sustenta que o celular lhe fora retirado já naquele momento. Pouco importa onde ocorreu o acesso, pois não havia autorização judicial para tanto.

Constou no interrogatório policial autorização para acesso ao aparelho (fls. 08), versão que foi desmentida por ele em juízo. Diante da contradição, merece mais crédito o segundo depoimento, haja vista a situação de tensão e medo pela qual passa qualquer pessoa presa, especialmente quando não acompanhada de defesa técnica.

Nessa esteira, a prova é ilícita (art. 5°, LVI, da CF, e art. 157 do CPP), bem como todas aquelas que dela derivaram. Determino o desentranhamento o documento de fls. 64/70.

Não é o caso, como quer a defesa, de anular o processo desde o auto de prisão em flagrante, pois a abordagem policial não decorreu do acesso ao telefone celular, tampouco a localização das 02 porções de maconha com o Réu Fernando e da pedra de crack com o Réu Izaias. O caso deve ser analisado à luz apenas do contexto fático do momento da prisão e das drogas ali apreendidas, abstraindo-se das informações contidas no telefone celular.

Passo então ao mérito, analisando cada um dos delitos imputados.

 

ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (ART. 35, LEI 11.343/06)

MATERIALIDADE

A jurisprudência se sedimentou no sentido de que o crime de associação para o tráfico só se materializa quando os agentes se associem para a prática do tráfico com permanência e estabilidade (STJ, HC 139942/SP, 2012), sem as quais pode haver, no máximo, tráfico em concurso de pessoas. Sendo crime formal, é irrelevante a apreensão de drogas na posse direta do agente (STJ, HC 441712/SP, 5ªT, 2019; RHC 93498/SC, 6ªT, 2018), do que resulta ainda que o delito independe do tráfico, podendo com ele formar concurso material.

No caso concreto, não há materialidade. O quadro probatório não aponta para a associação com estabilidade e permanência dos agentes. Embora as testemunhas policiais tenham afirmado que havia na região denúncias de entrega de drogas por motocicleta, nenhum dos relatos ligava os réus. Pelo contrário, a informação é que o comércio ocorria com tratativas pelo WhatsApp, mas o telefone celular do Réu Izaias, apreendido na ocasião, não possui o aplicativo e sequer faz ligações.

A versão da defesa deve prevalecer, qual seja, de que os Réus se conheciam apenas de vista e que Izaias, conforme já alegou desde a fase policial, estava fazendo a última rodada de entrega de lanches, quando resolveu desviar do caminho e parar numa rua escura para fazer uso da única pedra de crack que trazia consigo, mas se assustou ao ver a viatura policial no local e acabou abordado.

Fora essa ocasião, não há nada mais que conecte os Réus, razão pela qual é caso de absolvição.

 

TRÁFICO DE DROGAS (ART. 33, CAPUT, LEI 11.343/06)

RÉU IZAIAS FERREIRA DE PAULO

MATERIALIDADE

A materialidade restou demonstrada pelo auto de prisão em flagrante (fls. 02/13) e exames toxicológicos preliminar e definitivo (fls. 48/51 e 144/151).

 

AUTORIA

O próprio Réu Izaias admitiu a posse de uma pedra de crack em fase policial e em juízo, mas agregou tese defensiva ao mencionar que apenas se desviou de sua rota de entregas para parar em uma rua escura e consumir a única dose que trazia consigo, sem qualquer finalidade de traficância.

A tese acusatória é no sentido do conluio para tráfico, mas o quadro probatório aponta em sentido diverso. Embora os policiais tenham relatado que circulavam notícias de entrega de drogas por motocicleta, também relataram que não conheciam Izaias até aquele momento e que, salvo na ocasião dos fatos, não tinham nada que o incriminasse.

Em conclusão, não havia outros indícios, o Réu admitiu ser viciado em crack e que estava indo consumir, com ele não foi encontrado dinheiro ou qualquer objeto relacionado ao tráfico, trazia consigo uma única pedra, a tese que deve prevalecer é a defensiva. Desclassifico a imputação para o crime do art. 28, caput, da Lei 11.343/06.

 

RÉU FERNANDO RICARDO GIMENES

MATERIALIDADE

A materialidade restou demonstrada pelo auto de prisão em flagrante (fls. 02/13) e exames toxicológicos preliminar e definitivo (fls. 48/51 e 144/151).

 

AUTORIA

Tal qual Izaias, Fernando admitiu ser usuário de maconha, relatando que estava próximo à cerca de sua propriedade falando ao celular no momento da abordagem, sendo encontrados em sequência um tablete de maconha dentro de uma rede e outro no curral, pesando 74,97g e 12,40g. Segundo ele, era para uso próprio. Negou, todavia, que os 0,73g de cocaína que os policiais relataram ter encontrado fossem dele.

Já a acusação sustenta traficância, pois havia denúncias anônimas e o mesmo Réu já fora preso por tráfico pela testemunha Alessandro, policial militar. Como as denúncias davam conta que havia um sistema de entrega por motocicleta e comunicação via WhatsApp, presumiram ser Izaias associado a Fernando pelo fato de este ter chegado de motocicleta e tentado se evadir. Para além disso, essencialmente o que se produziu foi prova ilícita que não pode ser considerada para convencimento.

Igualmente aqui, o caso é de desclassificação para o crime de porte para uso pessoal (art. 28, caput, Lei 11.343/06). Explico.

Embora houvesse denúncias anônimas de tráfico e o Réu ostente antecedentes por este crime, as circunstâncias não permitem concluir com segurança que ele estava a praticar o crime. As notícias davam conta que os traficantes se comunicavam por WhatsApp, mas o suposto comparsa, Izaias, não possuía o aplicativo e seu telefone celular sequer era apto a fazer chamadas telefônicas. Além disso, não foi encontrado qualquer objeto tipicamente ligado ao tráfico de drogas, como invólucros, balanças, facas com raspas de maconha, dinheiro em espécie, bem como as drogas não estavam fracionadas em porções, como é comum nesse tipo de delito.

Diante disso, há consideravelmente mais indícios do crime de porte para uso do que do tráfico, e a dúvida nesta faz processual favorece a defesa (in dubio pro reo).

 

EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE

Para ambos os Réus, houve desclassificação do crime de tráfico para o crime do art. 28, caput, da Lei 11.343/06, que não prevê pena privativa de liberdade, apenas advertência, prestação de serviços à comunidade, medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo e, se descumpridas, admoestação verbal ou multa. É a pena mais branda de toda a legislação penal, não podendo em nenhuma hipótese ser convertida em privativa de liberdade, que é a pena mais gravosa.

Considerando que ambos ficaram preventivamente presos durante o processo, tal medida cautelar já foi, por si só, mais gravosa do que a pena. E como o processo não pode ser mais penoso que a sanção, o caso é de declaração de extinção de punibilidade por detração analógica virtual: detração (desconta o tempo de pena cumprida durante o processo), analógica (porque detrai penas de espécies diversas), virtual (porque desconta pena sem condenação do réu).

A tese da detração analógica é reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça:

 

É inviável o reconhecimento de reincidência com base em único processo anterior em desfavor do réu, no qual – após desclassificar o delito de tráfico para porte de substância entorpecente para consumo próprio – o juízo extinguiu a punibilidade por considerar que o tempo da prisão provisória seria mais que suficiente para compensar eventual condenação. STJ, 6ª Turma, HC 390.038-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 06/02/2018, DJe 15/02/2018.

 

DISPOSITIVO

Pelo exposto, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão punitiva deduzida na denúncia para absolver (art. 386, VII, do CPP) Fernando Ricardo Gimenes e Izaias Ferreira de Paulo da imputação do crime do art. 35 da lei 11.343/06, desclassificar o crime do art. 33, caput, da Lei 11.343/06 para o crime do art. 28, caput, da Lei 11.343/06, e declarar, quanto a este, JULGAR EXTINTA A PUNIBILIDADE.

 

Fixo os honorários advocatícios do Dr. Higor Pedroso Neves no valor de R$ 1.167,00 e determino expedir a certidão.

Transitada em julgado esta decisão, dar baixa e arquivar os autos.

 

Pratápolis/MG, 12 de dezembro de 2019

 

 

Bruno Mendes Gonçalves Ville

Juiz de Direito Substituto

 

 

RECEBIMENTO

Aos ______/______/______ recebi estes autos na secretaria. Para constar, lavrei o presente termo. Eu, _________________, escrivão(ã) judicial o escrevi.