JUSTIÇA ESTADUAL DE INSTÂNCIA

COMARCA DE BELO HORIZONTE

33ª VARA CÍVEL

 

Autos nº :

0024.13.197143-4

Num. Única :

1971434-44.2013.8.13.0024

Autor (es) :

TAM LINHAS AEREAS S/A E OUTRO

Adv. :

Drs. Carolina Carvalho Armond, Daniel Carvalho Armond, Ronaldo Armond, Rony Vainzof E Samara Schuch Bueno

Réu (s) :

JOSE AUGUSTO MADUREIRA

Adv. :

Drs. Adriana Mandim Theodoro De Mello, Ana Vitoria Mandim Theodoro, Humberto Theodoro Junior, Humberto Theodoro Neto, Juliana Cordeiro De Faria E Mario Tavernard Martins De Carvalho

Classe :

Procedimento Ordinário

Assunto :

CIVIL > Responsabilidade Civil > Indenização por Dano Moral

Juiz Prolator :

Pedro Camara Raposo-Lopes

Data :

17/11/2020

 

 

S E N T E N Ç A

 

 

Vistos e examinados estes autos, passo a relatá-los.

Na Comarca de Belo Horizonte, TAM LINHAS AÉREAS S.A. e MULTIPLUS S.A., sociedades empresárias devidamente qualificadas e nestes autos representadas por ilustres advogados, moveram, ao 09/5/2013, demanda sob procedimento comum [antigo procedimento comum ordinário] em face de JOSÉ AUGUSTO MADUREIRA, em que pediram a condenação do réu: a) nas obrigações de fazer consistentes: a.1.) na remoção de todas as menções às marcas das demandantes [“TAM” e “MULTIPLUS”] do sítio eletrônico [doravante site] por ele mantido na rede mundial de computadores [doravante internet] (“www.hotmilhas.com.br”); a.2.) no fornecimento dos dados completos dos participantes dos programas de fidelidade das autoras que lhe venderam seus pontos [“milhas”], bem assim das passagens aéreas que foram emitidas mediante a utilização de pontos [“milhas”] adquiridos dos participantes dos programas de fidelidade das demandantes; b) na obrigação de não fazer, consistente na abstenção da prática de negociação de pontos dos programas “TAM Fidelidade” e “Multiplus Fidelidade”, bem como de passagens aéreas emitidas pela autora TAM LINHAS AÉREAS S.A.; c) na compensação pelos danos extrapatrimoniais que alegaram haver experimentado; d) no pagamento de indenização por lucros cessantes e “eventuais outros danos às autoras que sejam apurados em liquidação de sentença”.

Como causa de pedir, aduziram que a TAM LINHAS AÉREAS S.A. é sociedade empresária que se dedica ao transporte aéreo de passageiros, enquanto a MULTIPLUS S.A. ao desenvolvimento e manutenção de uma “rede de multifidelização”, cognominada “Multiplus Fidelidade”, a qual reúne, em uma conta, os benefícios, produtos e serviços oferecidos por diferentes empresas e seus respectivos programas de relacionamento e de incentivo à fidelidade comercial; que a MULTIPLUS S.A. assumiu a atividade de acúmulo e resgate de pontos ["milhas"] da TAM LINHAS AÉREAS S.A., de modo que, por meio de seus serviços, consumidores podem acumular pontos do programa “TAM Fidelidade”, bem como trocá-los por passagens aéreas e outros benefícios; que, pelos regulamentos dos programas “TAM Fidelidade” [subitens 1.6. a 1.8. e 2.1.1.] e “Multiplus Fidelidade” [subitens 2.1. e 2.3 a 2.5], os pontos acumulados não podem ser negociados, sendo pessoais e intransferíveis, do que ficam cientes os consumidores ao a eles aderirem, bem como das responsabilidades pelo descumprimento de tais obrigações; que, no caso da TAM LINHAS AÉREAS S.A., a maior ocupação deles [assentos] por passageiros bonificados indevidamente com a compra das pontuações, reduz a oferta de assentos para passageiros pagantes ou membros do programa fidelidade”, o que, por seu turno, provoca a elevação dos preços cobrados pela companhia aérea na razão da redução de assentos pagos; que o réu vem desenvolvendo atividades que fomentam o descumprimento dos regulamentos dos programas, por meio de seu site www.hotmilhas.com.br, na medida em que estimula a negociação de "milhas" acumuladas e a aquisição de bilhetes fora dos canais autorizados, resultando em enriquecimento ilícito do demandado, exposição indevida do nome e da imagem da TAM LINHAS AÉREAS S.A., indução do consumidor a erro e sua exposição a riscos decorrentes do compartilhamento de informações sigilosas; que, a partir de 01/01/2010, a MULTIPLUS S.A. adquiriu o direito de operar as "milhas" TAM como “pontos Multiplus”, sendo que a atividade do réu viola a parceria por elas estabelecida; que o objeto da empresa do réu é ilícito, na medida em que as "milhas" estão fora do comércio; que, com a sua conduta, o réu consegue praticar preços atrativos para passageiros que deixam, por tal razão, de adquirir passagens pelas vias legais; que a conduta do réu também viola diversas garantias asseguradas pelo CODECON (Lei nº 8.072, de 1990) aos consumidores; que a empresa do réu viola o direito marcário das autoras; que a utilização indevida das marcas das autoras e a possibilidade de exclusão do programa de membros que venham a contrariar seus regulamentos poderão causar-lhes agravos patrimoniais, considerada a confusão que a empresa do réu é capaz de propiciar.

À causa atribuíram “valor inestimável”, recolhendo as custas nas folhas 122-128.

Com a petição inicial vieram os documentos de folhas 34-121

Pela respeitável decisão de folhas 123-124, o modelar magistrado titular deste Juízo de ofício corrigiu o valor atribuído à causa, fixando-o em R$ 135.600,00 (cento e trinta e cinco mil e seiscentos reais).

A tutela de urgência vindicada restou indeferida pela decisão de folhas 129-131.

Apresentou o réu resposta na modalidade de contestação (folhas 173-196) em que alegou que, diversamente do que narrado na petição inicial, a MULTIPLUS S.A. gera os pontos do programa de fidelidade e os comercializa junto a terceiros, geralmente bancos comerciais, grupos hoteleiros e farmácias; estes, por seus turnos, embutem o valor dos pontos adquiridos junto à autora em seus produtos e serviços, trespassando-os a seus consumidores para que os troquem por outros, sendo, no mais das vezes, por passagens aéreas; que não se trata, assim, de mera recompensa graciosa pela fidelidade, razão pela qual a vedação dos regulamentos proporciona às autoras enriquecimento sem causa, em detrimento dos consumidores; que os pontos dos programas de fidelidade são bens comercializáveis; que a MULTIPLUS S.A. confia na expiração dos pontos [breakage] para incrementar seus lucros; que as "milhas" que expiram anualmente seria bastantes para a aquisição de 5.000.000 (cinco milhões) de passagens de voos originados do Brasil para qualquer país da América do Sul; que a atividade do réu equipara-se a mandato oneroso, remunerando-se pela diferença entre o valor pago pelo cessionário e o valor fixado pelo cedente; que não comercializa passagens, apenas realiza a intermediação da cessão, unindo os interessados; que não há lei que vede a empresa do réu, fruto da liberdade de iniciativa; que a cláusula ou disposição regulamentar que impede a disponibilização das "milhas" pelo consumidor ocasiona-lhes excessiva desvantagem; que os regulamentos não são oponíveis a terceiros; que o demandado não se vale das marcas das coautoras para incrementar seu negócio; que não há danos extrapatrimoniais passíveis de compensação; que “quanto mais pontos são convertidos em passagens aéreas pela Multiplus, mais a TAM ganha, pois mais passagens aéreas a TAM vende para a Multiplus”.

Réplica à contestação, nas folhas 474-504.

Sobre documentos juntados, manifestou-se o réu nas folhas 636-649.

Nova manifestação das autoras, em folhas 653-673.

Instadas as partes à especificação de provas, requereu o réu a realização de perícia contábil nas demonstrações financeiras das autoras, depoimento pessoal, prova testemunhal e juntada de novos documentos; requereram as autoras a produção de prova pericial nos computadores da empresa do réu, prova testemunhal e juntada de novos documentos.

Pela decisão interlocutória de saneamento de folhas 746-747, restou indeferida a produção das provas pleiteadas pelas partes, razão pela qual interpuseram as autoras recurso ao qual foi agregado efeito suspensivo, de molde a propiciar a realização de prova pericial.

Laudo pericial juntado em folhas 1186-1194, a respeito do qual manifestou-se o réu, nas folhas 1195-1203; as demandantes, nas folhas 1211-1216.

Esclarecimentos pelo ilustre perito, às folhas 1220-1222, seguido de novas manifestações do réu, nas folhas 1223-12224; das autoras, nas folhas 1225-1227.

Razões finais escritas, pelas autoras, em folhas 1240-1250; pelo réu, em folhas 1251-1266.

Vieram-me os autos conclusos para sentença.

É o RELATÓRIO do quanto necessário. Passo a FUNDAMENTAR e DECIDIR.

Não há nulidades a serem sanadas, tampouco vislumbro a existência de quaisquer delas que possam e devam ser reconhecidas de ofício.

E porque se encontram presentes os pressupostos de existência e de desenvolvimento válido e regular do processo, assim como as condições para o legítimo exercício do direito de ação, súbito passo ao exame do mérito.

Pretendem as demandantes, em apertadíssima síntese, tutela inibitória que faça cessar as atividades desenvolvidas pelo réu, titular de site na internet que promove, animus lucrandi, a aproximação de titulares de pontos dos programas de fidelidade por elas mantidos e terceiros que pretendam adquirir bilhetes representativos de contrato de transporte, a preços evidentemente menores do que os praticados pela companhia aérea em seus canais de atendimento.

Sustentam as demandantes que a atividade promovida pelo réu viola as bases em que estruturados os programas de fidelidade, nas quais os pontos [ou "milhas", no caso da companhia aérea autora] são coisas fora do comércio, porque fruto de negócio jurídico gratuito e que, por isso, admitiriam restrições ao livre exercício de disposição [cláusula de inalienabilidade].

Na trincheira oposta, sustenta o demandado que a atividade empresária desenvolvida pelas autoras em seus programas de fidelidade traduz-se em negociação e circulação de "milhas", as quais são vendidas a parceiros comerciais e também diretamente aos consumidores, não existindo, a fortiori, qualquer gratuidade, razão pela qual proscreve-se a aposição de cláusula de inalienabilidade.

Também sustentou o réu que o que pretendem as demandantes é impedir que os titulares de pontos ou de "milhas" possam alienar tais direitos antes do prazo fixado para sua expiração [breakage], sendo que a expiração reverte-se em importante incremento da receita operacional das demandantes.

Nessa senda, os consumidores titulares de "milhas", ao procurarem o demandado por meio de seu site, outorgam-lhe poderes de mandatário para, em seus nomes, entabular negócios jurídicos válidos com terceiros interessados em adquiri-las.

Pois bem, é da experiência que há duas maneiras de se acumulares "milhas" ou pontos em programas de fidelidade.

Uma delas é pela adesão a um desses programas e pela efetiva aquisição de bens e serviços junto a consorciados; a outra é pela aquisição de pontos ou "milhas" diretamente das próprias empresas emissoras de tais direitos, precedida da adesão aos programas.

É bem verdade que negam as demandantes a venda direta de pontos ou "milhas", ao argumento de que o que vendem, na verdade, seriam “direitos de resgate de prêmios”.

Rogando redobrada vênia, cuida-se, a meu aviso, de nomenclatura que, conquanto possa irradiar algum efeito importante para fins contábeis, não escamoteia a verdadeira natureza de compra e venda de pontos ou "milhas".

Entretanto, como procurarei demonstrar, tal circunstância é anódina para o desate da controvérsia.

Pela primeira modalidade de acumulação de pontos, a cada compra em estabelecimentos consorciados ou aquisição de passagens aéreas adquiridas fará jus o consumidor a uma correlata quantidade de pontos ou de "milhas", quantidade essa que variará conforme sua categoria.

Caso se trate de consumidor cuja fidelidade tenha sido demonstrada por meio de elevados gastos, fará jus a um multiplicador diferenciado em relação àqueles que possuam níveis de aquisições de bens ou serviços mais modestos.

O punctum saliens reside, portanto, na verificação da licitude da vedação, constante nos regulamentos respectivos, de transferência de pontos ou "milhas" a terceiros.

Brevitatis causa, permito-me transcrever apenas o subitem 2.3. do Regulamento “Multiplus Fidelidade”:

2.3 Negociação de Pontos e de benefícios da rede Multiplus Fidelidade. Fica expressamente proibida a negociação pelo Participante dos Pontos e/ou dos benefícios oferecidos pela rede Multiplus Fidelidade, sob qualquer forma, incluindo, mas não se limitando à sua compra, venda, cessão ou permuta. A comprovação de tais práticas ensejará a imediata exclusão do Participante da rede Multiplus Fidelidade e o cancelamento dos Pontos, independente de serem tomadas as medidas judiciais cabíveis.

 

A medrar a pretensão das autoras, i.é, chancelada a indisponibilidade dos pontos ou "milhas", a empresa do réu [que em muito se assemelha a um “mercado de balcão” de valores mobiliários com corretor exclusivo] deverá ser tida e havida por juridicamente inviável, dada a ilicitude de seu objeto (Código Civil brasileiro (CC), artigo 104, inciso II).

Anoto que não se cuida, portanto, de se perquirir se os regulamentos lhes são oponíveis ou não. Uma vez reconhecida a ilicitude do bens da vida objeto de sua atividade, porque insuscetíveis de serem postos no mercado, inquinada de ilicitude estará a própria empresa exercida pelo réu.

O argumento central da tese do demandado é o de que os pontos ou "milhas" atribuem a seus titulares direitos de crédito especial, passíveis de serem livremente transacionados.

Encastela-se nas tersas lições de Marli Aparecida Sampaio, constantes em precioso artigo intitulado “A Natureza Jurídica dos Pontos Acumulados nos “Programas de Fidelidade” ou “Programas de Milhas” das Companhias Aéreas”1, mais precisamente no seguinte excerto, ipsissima verba:

Ao pagar o preço da passagem, ou utilizar de serviços que efetuem pontuação, o consumidor, reitera-se: está pagando em parcelas, por um serviço de transporte aéreo que se efetivará ao final. Mas enquanto não alcança os pontos, também existe uma legítima pretensão do consumidor em somar os pontos, cuja administração fica a encargo da companhia aérea. Esta administração não se dá a título gratuito, mas por interesse da companhia em "cativar" seus clientes. Daí a remuneração quase que indireta do serviço de contagem de pontos. Ocorre no caso vertente o que Claudia Lima Marques denomina de "falácia da gratuidade". […] Não existem passagens aéreas grátis, quando entregues por conta de que o passageiro já alcançou as milhas. Na realidade, o consumidor já pagou por elas, e cumpre à companhia honrar todos esses compromissos, sob pena de buscar a tutela de seus direitos junto à Justiça.

 

 

Devo registrar que em nenhum momento a articulista abordou a vexata quaestio da intransmissibilidade desses direitos, embora tenha ali deixado assentada a natureza onerosa da sua aquisição.

Quanto a esse ponto, ouso divergir.

É verdade que o serviço de administração de pontos pode ser considerado prestação de serviços para a finalidade de atrair a tessitura protetiva do CODECON (Lei nº 8.072, de 1990).

Assim, se falha houver que possa vir a ser relacionada com esse serviço de administração [como, p.ex., o não cômputo de "milhas" devidas em virtude de uma viagem empreendida], responderão as autoras objetivamente pelo vício do serviço.

Não assim o negócio jurídico atributivo dos direitos que, muito embora encontre supedâneo em relações jurídicas de jaez consumerista, é autônomo e não recebe o influxo da rede protetiva liberada pelo CODECON (Lei nº 8.072, de 1990).

Em outras palavras, o ato jurídico que insere determinado indivíduo dentro no rol de participantes do programa, e que o investe das expectativas, ônus, direitos, deveres e sujeições dele defluentes, não se assujeita ao regime jurídico consumerista.

Diversamente do que sustentou a ilustre articulista, o consumidor que adere a um programa de pontuação ou de fidelidade não efetua pagamento parcelado de bem futuro, o que se demonstra pela ausência de diferença de preço em relação àquele consumidor que optou por não aderir.

Os custos referentes ao resgate de seus direitos encontram-se adrede diluídos por todos os membros integrantes da comunidade de consumidores das administradoras dos programas ou das empresas que a elas se consorciam, independentemente de estarem ou não vinculados a um programa de fidelidade ou de pontuação.

É dizer, quando se compra uma passagem aérea de determinada companhia, pode-se ou não granjear "milhas" no âmbito do programa de fidelidade por ela administrado. A única condição para que se as acumule é ter-se aderido ao programa, sem que da adesão decorra qualquer ônus financeiro direto para o consumidor [os custos de administração e outros já se encontram implexos nos preços praticados pelo fornecedor de produtos e serviços].

O lucro auferido pela empresa administradora do programa é apenas um epifenômeno que não desnatura o caráter essencialmente gratuito do negócio.

A atribuição de pontos ou "milhas" a consumidores enverga natureza de promessa de recompensa, conforme pontifica, com precisão capilar, o eminente professor Nelson Nery Junior, em parecer publicado na Revista de Direito Privado (vol. 52/2012, Out - Dez / 2012, p. 285 – 314), verbatim, mas com supressões decorrentes da síntese e grifos por mim adicionados:

Como expusemos ao longo deste parecer, não há que se confundir negócios jurídicos bilaterais e unilaterais. Quando se fala em declaração unilateral de vontade, fala-se de negócio jurídico unilateral. Nessas hipóteses, o negócio jurídico se aperfeiçoa pela declaração de seu autor, sem a necessidade de aceitação de outro sujeito. De outro lado, o negócio jurídico é bilateral quando para se realizar exige o concurso de vontades de pelo menos dois sujeitos, destinadas a um determinado fim querido pelas partes. Ao negócio jurídico bilateral dá-se o nome de contrato.

 

Por conseguinte, o negócio jurídico unilateral não é contrato porque independe da conformação de vontade da outra parte para que se aperfeiçoe. Falta em sua estrutura o que a doutrina determina de o princípio do contrato, ou seja, falta-lhe a convenção bilateral.

 

Entre os negócios jurídicos unilaterais típicos está a promessa de recompensa. A promessa de recompensa consiste, pois, em negócio jurídico unilateral que se constitui a partir da declaração pública de vontade do promitente que, independentemente da aceitação de outrem, se compromete a recompensar ou a gratificar aquele que fizer determinado serviço ou satisfizer condição.

 

São requisitos essenciais da promessa de recompensa: (1) a manifestação unilateral de vontade; (2) a publicidade da manifestação; (3) o objeto (ato ou serviço a ser realizado para se obter a recompensa); (4) e o prêmio a ser atribuído àquele que realizar ato ou serviço. No que tange à validade, a promessa de recompensa exige: (1) seja realizada por pessoa absolutamente capaz; (2) ser lícito seu objeto; (3) estar a declaração unilateral de vontade revestida da forma estabelecida ou não proibida por lei; (4) atender alguma solenidade se a lei considerar esse requisito essencial para sua validade.

 

Tendo-se em conta o conceito e os requisitos de existência e de validade da promessa de recompensa, o exame cuidadoso do programa de recompensas da Consulente nos autoriza a concluir, seguramente, subsumir-se o aludido programa ao instituto da promessa de recompensa.

 

Com efeito, o Programa TAM Fidelidade reúne todos os requisitos necessários para a caracterização da promessa de recompensa. O programa parte de declaração unilateral de vontade da TAM, a qual estabelece, no seu regulamento, as regras para utilização dos benefícios oriundos do programa de recompensas. Esse mesmo regulamento pode ser consultado no próprio site da Consulente, logo, a publicidade da promessa de recompensas está configurada. O regulamento da Consulente também determina o ato ou condição a ser cumprida pelo interessado de modo a obter para si o direito à recompensa, qual seja, voar pela TAM com a maior assiduidade possível. Por fim, o prêmio estabelecido é a possibilidade de viajar sem a contraprestação financeira, em razão dos pontos acumulados pelo Programa TAM Fidelidade.

 

No que se refere à validade do programa de milhagens, não se encontra nenhum elemento que lhe possa invalidar, haja vista ser realizado por pessoa jurídica capaz, o objeto ser lícito e atender a todas as formalidades legais necessárias para a promessa de recompensa, in casu, a publicidade da manifestação de vontade (regulamento) bem como a pública e prévia informação de qualquer alteração a ser realizada no referido regulamento.

 

Essa conclusão se reforça quando se analisa quando e como se dá a formação do negócio jurídico unilateral consubstanciado no programa de recompensa da Consulente (Programa de Fidelidade TAM) e, especialmente, quando se obriga a Consulente, então promitente. Parece-nos que as obrigações decorrentes do programa nascem para a Consulente no exato momento que ela anuncia e divulga ao público seu programa de recompensa, obrigando-se perante um público indeterminado, é dizer, todos aqueles que preencherem os requisitos da promessa de recompensa por ela feita. É dizer o nascimento das obrigações para a TAM decorrentes do seu programa de recompensas prescinde de manifestação de vontade ou aceitação da outra parte, não havendo que se falar, portanto, em formação de contrato.

 

Advertimos, uma vez mais, que não há que se confundir a mera inscrição do beneficiário no programa como se se tratasse de adesão ou aceitação. Constitui esta, em verdade, ato meramente operacional, com o cunho específico de tornar conhecido (rectius: identificável) o beneficiário, bem como permitir a aferição do preenchimento das condições que lhe confira direito à recompensa, servindo, pois, apenas para cadastrar aquele que terá direito ao benefício, semelhantemente àqueles que se inscrevem em concursos de recompensa.

 

Logo, não é a inscrição do beneficiário no programa da Consulente que faz surgir suas obrigações. Estas já existem desde quando ela publica o regulamento de seu programa de recompensa (inclusive porque, nesse momento, ela já aufere certas vantagens de imagem e marketing perante o grande público, fruto justamente de seu programa de recompensa).

 

Assim, em conclusão e tendo-se o cuidado de não confundir o programa de recompensas com a relação jurídica primária estabelecida entre a TAM e seus clientes (esta, sim, um genuíno contrato de prestação de serviços, que perfaz uma típica relação de consumo), podemos afirmar que o programa de recompensas da TAM não constitui um contrato de prestação de serviços, tampouco estabelece entre a Consulente e os beneficiários desse programa uma típica relação de consumo. Em nosso sentir, é incorreta a pretensão do Ministério Público da Bahia de tratar o programa de recompensas da TAM como se genuíno contrato fosse, assim como seu propósito de submeter seu regulamento e cláusulas ao confronto direto e imediato dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (LGL\1990\40) que dispõe da proteção contratual dos consumidores.

 

 

Por conseguinte, não há que se apodar de nula a cláusula que veda a transferência da pontuação ou das "milhas", sob pena de se subverter a própria razão de ser do programa, que é a formação de um grupo de consumidores cativos e assíduos.

O prazo de expiração dos pontos ou das "milhas", lado outro, não interfere de maneira relevante nessa relação jurídica, revelando-se, antes, condição de fruição dos benefícios do programa.

A circunstância de as administradoras auferirem receitas do breakage [apropriação contábil decorrente da não utilização de "milhas" por expiração] é também secundária, não desnaturando o programa que é de natureza essencialmente gratuita, embora não seja economicamente desinteressada.

À guisa de reforço de argumentação, entendo que a alienação dos direitos por seus titulares redundaria por reconhecer, no limite, a conversibilidade de tais direitos em dinheiro.

O egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios já teve a oportunidade de enfrentar o tema em aresto cuja ementa encontra-se vazada nos seguintes termos, litteratin:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO. COMPANHIAS AÉREAS. DIREITOS CREDITÓRIOS DO DEVEDOR DECORRENTE DE PROGRAMA DE MILHAGENS. INEFICÁCIA DA MEDIDA. PENHORA SOBRE MILHAS AÉREAS. IMPOSSIBILIDADE. MECANISMO DE CONVERSÃO EM DINHEIRO. AUSÊNCIA. DECISÃO MANTIDA. 1. Conquanto possuam expressão econômica, as "milhas aéreas" não podem ser objeto de penhora, ante a ausência de mecanismos seguros e idôneos que permitam sua conversão em dinheiro e possuem caráter pessoal e intranferível. 2. Recurso Conhecido e não provido. (TJDF; Rec 2015.00.2.002640-8; Ac. 856.238; Segunda Turma Cível; Relª Desª Gislene Pinheiro de Oliveira; DJDFTE 25/03/2015; Pág. 140, original sem grifos)

 

Do voto-líder da preclara relatora, a Desembargadora Gislene Pinheiro, pinço o seguinte excerto, verbis:

Inicialmente, convém reconhecer que nos últimos anos, inúmeros programas de fidelidade têm conquistado espaço no mercado consumidor brasileiro que já conta, hoje, com diversas empresas que, paralelamente aos serviços prestados, instituem um programa de fidelidade que objetiva, em última análise, reter e atrair consumidores para os seus serviços, tornando-os cativos à empresa.

 

Os programas de milhagem das companhias aéreas, em particular, despertam especial atenção, ante os benefícios, em tese, proporcionados, a ponto de já tramitar proposta legislativa no Congresso Nacional que visa regulamentar a matéria, a exemplo do Projeto de Lei n° 6.484/2013, em trâmite na Câmara dos Deputados.

 

Disso exsurge que, de fato, as milhas aéreas possuem nítida expressão econômico. O que, todavia, não permite concluir que possam ser objeto de constrição patrimonial através de penhora ou outro mecanismo de tutela satisfativa de direito creditório.

 

Isso porque, além do caráter pessoal e intransferível, as milhas aéreas não podem ser convertidas em dinheiro, ante a ausência de mecanismos de conversão idôneos e seguros.

 

Portanto, mesmo possuindo, em tese, valor econômico, a falta de expressão em dinheiro afasta das milhas aéreas a natureza de crédito e, em consequência, a possibilidade de penhora. (origina sem grifos)

 

Por fim, analisei com profunda reverência o acórdão produzido nos autos do agravo de instrumento interposto contra a decisão que indeferiu a liminar ambicionada, relatado pelo preclaro Desembargador Eduardo Mariné da Cunha.

Funda-se o aresto na premissa de que, sobre se tratar de negócio oneroso, inviável seria a aposição de gravame de inalienabilidade.

Com respeitosa vênia, entendo de forma diversa, e por dois motivos basilares.

A uma, porquanto, como procurei demonstrar, não se está a tratar de negócio essencialmente oneroso. Só será oneroso em caráter secundário, quando o participante optar por comprar "milhas" diretamente às autoras, de modo a completar a quantidade de "milhas" faltantes para adquirir um bilhete ou para que sejam creditadas à conta de terceiros também participantes do programa.

A duas porque, ainda que se tratasse de negócio oneroso, não há empeço de ordem legal a que se gravem de inalienabilidade bens ou direitos que tenham sido frutos de negócios jurídicos onerosos.

Existem, é bem certo, divergências em âmbito doutrinário.

Clóvis Beviláqua [Código Civil Comentado, v. VI/109], argumenta que a clausulação seria lesiva aos credores, negando vigência ao princípio de que o patrimônio do devedor é a garantia daqueles.

De outra lado, porém, Álvaro Villaça Azevedo [Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 15/47 e 48] sustenta que “as partes estipulam o que for do seu interesse, só não podendo ofender a lei, os bons costumes e a ordem pública. Assim, em princípio, o que for acordado tem valor jurídico entre os contratantes, que sabem, eles, sim, nas multifárias circunstâncias da vida, o que melhor lhes convém”

Eis porque entendo que, sob todo e qualquer ângulo que se encare a questão, a alienação de pontos ou "milhas" fora do âmbito do programa de fidelidade administrado pela autoras é infensa não só à sua ratio essendi, mas também às normas regulamentares que os regem e às quais acedem os beneficiários.

Em que pese a tais fundamentos, não encontra esteio em bom direito a pretensão autoral que obrigue o réu a fornecer os dados dos participantes dos programas de fidelidade que lhe venderam seus pontos, na medida em que não há norma que ampare tal pedido.

Da mesma sorte, entendo que não há dano extrapatrimonial passível de compensação, na medida em que a atuação do réu não causou abalo de crédito ou conspurcação do bom nome das autoras, até porque não houve prova de indevida utilização de marca [a simples menção à denominação das autoras não equivale à efetiva utilização da marca por terceiro não autorizado].

Também não merece guarida a pretensão de condenação do réu na indenização dos lucros cessantes “e eventuais outros danos às autoras que sejam apurados em liquidação de sentença”.

Com efeito, as passagens que foram emitidas pela TAM LINHAS AÉREAS S.A. em função das "milhas" acumuladas pelos usuários dos programas seriam emitidas de toda e qualquer sorte, a não ser que expirassem. Já a indenização pelo breakage que não se aperfeiçoou [tomando-se por certa a assertiva de que muitas dessas "milhas" teriam seus prazos de validade expirados] equivaleria a indenizar por um dano hipotético.

A remoção dos nomes das autoras do site é consectário da vedação à promoção de vendas de passagens aéreas ou negociação com pontos ou "milhas" dos programas de fidelidades por elas administrados.

Por fim, eventuais “outros danos às autoras” não poderão ser objeto de apuração em sede de liquidação. Às demandantes impendia o ônus de demonstrá-los já nesta fase de conhecimento.

Nessa ordem de considerações, extingo o feito com resolução do mérito (Código de Processo Civil (CPC), artigo 487, inciso I) e julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para:

a) CONDENAR o réu na obrigação de não fazer consistente na abstenção de negociação de pontos dos programas TAM Fidelidade ("milhas") e Multipulus Fidelidade;

b) CONDENAR o réu na obrigação de não fazer, consistente na abstenção de promover a venda de bilhetes aéreos da TAM LINHAS AÉREAS S.A. por qualquer meio não autorizado, especialmente pelo site www.hotmilhas.com.br;

c) CONDENAR o réu na obrigação de fazer, consistente na remoção de todas as menções aos nomes das autoras do site www.hotmilhas.com.br.

Sendo caso de sucumbência recíproca, deverão as partes suportar os ônus respectivos na seguinte proporção: 50% (cinquenta por cento) as autoras; 50% (cinquenta por cento) o réu.

Considerando o delongado tramitar processual, a realização de prova pericial, o alentado das petições, mas também o local da prestação dos serviços, fixo os honorários advocatícios em 17% (dezessete por cento) sobre o valor da causa, conforme arbitramento feito pelo Juízo, observada a proporcionalidade supra.

Condeno as partes nas despesas processuais, também na conformidade da proporcionalidade supra.

Interposto recurso por qualquer das partes, dê-se vista em contrarrazões e subam ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, independentemente de nova conclusão.

Publique-se

Registre-se.

Intimem-se

Belo Horizonte, 17 de novembro de 2020.

 

 

PEDRO CAMARA RAPOSO-LOPES

56º Juiz de Direito Auxiliar da Comarca da Capital

1Revista de Direito do Consumidor, vol. 60/2006, p. 196 – 211, Out - Dez/2006