PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

COMARCA DE JUIZ DE FORA

TRIBUNAL DO JÚRI

 

 

PROCESSO Nº. 145.16.015.371-0

DECISÃO



Vistos etc.

 

A JUSTIÇA PÚBLICA, com base em inquérito policial iniciado por Portaria, denunciou JOSÉ MARTINS como incursos nas sanções dos artigos 121, § 2º, IV e VI, § 2º-A, I e § 7º, III c/c 14, II, do Código Penal (em relação à vítima Maria Lúcia Nunes da Silva) e 121, § 2º, IV, c/c 14, II, (em relação as demais vítimas), do Código Penal, acusando-o de no dia 30/10/2015, por volta de 01:00 hora, na Avenida Governador Valadares, nº 227, no bairro Manoel Honório, nesta cidade, na direção de veículo automotor, ter tentado matar MARIA LÚCIA NUNES DA SILVA, sua ex-amásia, e com dolo eventual, assumindo o risco do resultado morte, atentou contra a vida de VITÓRIA CAMPOS VASCONCELOS GOMES, YURI NUNES DE SOUZA e KÁTIA REGINA ARAÚJO MOTTA.

 

Narra a denúncia que as vítimas se encontravam em uma mesa na calçada do bar “Madre Beer”, quando o denunciado chegou no estabelecimento e ficou olhando para Maria Lúcia de forma ameaçadora. Incomodado com a situação, o filho dela, a vítima Yuri, foi conversar com José Martins, tendo este declarado que aquela noite não acabaria bem.

 

Após algum tempo, o denunciado retirou-se do bar e saiu em seu veículo, retornando minutos depois, lançando o carro em direção às vítimas, atingido-as e causando-lhes as lesões descritas nos Autos de Corpo de Delitos de fls. 17/18, 19/20 e 21. Não satisfeito, o acusado manobrou o veículo e atropelou novamente Maria Lúcia, causando-lhe as lesões constantes no ACD de fls. 48/49.

 

 

Alega ainda o Ministério Público, que com relação à vítima Maria Lúcia, os fatos constituem feminicídio, pois foi praticados contra mulher, por razões do sexo feminino (relacionamento amoroso rompido), no contexto de violência doméstica e familiar e na presença do filho dela, e impossibilitou as defesas das vítimas, ao surpreendê-las num bar, num momento de descontração.

 

Recebido a denúncia em 30/09/2016 (fl. 68), o denunciado foi citado por Edital (fl. 85), sendo o processo suspenso, nos termos do artigo 366 do CPP e decretada sua prisão preventiva (fl. 162).

 

Realizada audiência de antecipação de provas (fls. 162/164). O mandado de prisão foi cumprido em 07/08/17 (fl. 266). Indeferido o pedido de revogação da prisão preventiva (fls. 347/349).

 

Citado pessoalmente (fls. 354/355), apresentou resposta à acusação (fls. 304/309).

 

Em audiências de instrução (fls. 444/446 e 493/495) foram inquiridas as vítimas, as testemunhas de acusação e defesa e, posteriormente, interrogado o acusado.

 

Deferida a habilitação da vítima Maria Lúcia Nunes da Silva como assistente de acusação (fls. 516).

 

Em alegações finais, o Ministério Público requereu a pronúncia, nos termos do aditamento da denúncia (fls. 518/527), tendo a Assistente de Acusação ratificado os memoriais apresentados pelo Ministério Público (fls. 551). A Defesa pugnou pela desclassificação para lesão corporal culposa prevista no artigo 303 do CTB, remetendo os autos a uma das Varas Criminais desta Comarca, e, subsidiariamente, o decote da qualificadora de feminicídio (fls. 554/562).

 

É o relatório.

 

Decido.

 

 

Inicialmente ressalto que a pronúncia é um simples juízo de admissibilidade da acusação, que exige somente a prova da materialidade do delito e indícios suficientes de sua autoria, devendo ser evitado, por essa razão, o exame do mérito, que deverá ser objeto de convencimento dos Juízes naturais da causa. Nesse sentido, tenho que presentes os requisitos para a pronúncia do acusado, senão vejamos.

 

As materialidades das tentativas de homicídios estão evidenciadas nos Autos de Corpo de Delito (fls. 17/21 e 48/49), e a autoria, por seu turno, encontra-se indiciada na prova oral, coligida sob o crivo do contraditório, da qual se destaca, notadamente, as palavras da vítima Maria Lúcia Nunes da Silva, que afirmou em juízo ( CD – fls. 164 e 445):

 

“… a questão do acusado abordar a depoente por via eletrônica começou pelo Whatsapp, onde ele afirmava ‘você tem que ficar comigo, volta pra mim, não consigo viver sem você, se você não vai ficar comigo não vai ficar com mais ninguém’ … a frase ‘se você não vai ficar comigo não vai ficar com mais ninguém’ era muito constante … não viu a hora do impacto … ele veio pela rua de trás e pegou os quatro, sendo que o foco era a depoente … os outros estavam no meio, acabou que pegou eles também … não teve nenhuma possibilidade de defesa o acusado jogou a depoente pro alto … caiu … o acusado deu ré e foi de novo … ele ameaçou a depoente por mensagens, e principalmente áudios … estava se precavendo de sair porque ela tinha medo do acusado … o acusado que ameaçou o filho da depoente … falou com o filho da depoente ‘essa noite não vai acabar bem’ …” (g.n.)

 

A vítima Kátia Regina Araújo Motta afirmou em juízo ( CD- fls. 164 e 445):

 

“… estava de costas e foi a primeira que o acusado acertou, só que a depoente caiu na hora, e depois levantou, quando a depoente levantou que ela viu que sua amiga estava a uns metros, esticada, que foi a hora que o acusado foi e voltou com o carro pra passar em cima dela novamente … a depoente não teve nenhuma possibilidade de defesa, de desviar, ou sair … depois de atingir os quatro, o acusado foi com o carro, parou o carro, voltou, deu a ré em cima do passeio, aonde Maria Lúcia estava caída e passou em cima novamente, com a traseira do carro, e aí foi embora … que a depoente saiba o motivo foi a não aceitação do término do relacionamento…” (g.n)

 

Em juízo, a vítima Yuri Nunes de Souza confirmou alegado na Depol, e esclareceu (fls. 164 e 445):

 

“… confirma que o acusado havia dito anteriormente à sua mãe que se ela não ficasse com ele, ela não ficaria com mais ninguém … o depoente ouviu ele falar … o acusado mandava eram falando que ele ia ficar com ela de qualquer jeito … não aceitava o término do relacionamento … eles não tiveram nenhuma possibilidade de se defenderemo acusado bateu na mesa, eles foram arremessados, depois o acusado deu ré em cima da mãe do depoente, pra passar por cima dela mesmo …” (g.n.)

 

A vítima Vitória Campos Vasconcelos Gomes também confirmou seu depoimento na Depol:

 

“… foi atingida pelo carro, na parte de trás do corpo, o carro veio por trás da depoente … não teve como se defender, porque eles já tinham levantado da mesa quando o carro veio, então pegou eles praticamente de costas, aí a depoente foi jogada e levantou rapidinho para se proteger, pois a depoente viu que o acusado estava ainda com o carro movimentando … o acusado perseguia Maria Lúcia, esperava ela na frente do trabalho …” (g.n.)

 

Confirmando o Boletim de Ocorrência, ao ser inquirido em sede policial, o Policial Marciano Matias relatou (fl.445):

“… se perde o controle direcional do veículo, passava direto, ia pra Brasil, e caía no Rio Paraibuna … a simples perda de controle não iria no bar … por simples perda de controle direcional, assim dizendo, a pessoa passaria direto … jamais manobraria pra cima do passeio para virar a esquina … ele teve intenção de praticar o que praticou, sendo o alvo principal a senhora que teve o relacionamento com ele, e os outros secundários, o que a gente interpretou no dia …” (g.n)

 

A testemunha Annie Ledo Ribeiro, garçonete no bar onde ocorreram os fatos, afirmou em juízo ( CD- fl. 445):

 

“… já estava recolhendo os copos e algumas coisas da mesa … o acusado deu a volta no quarteirão, aí tem tipo uma curva para entrar na praça, ele fez aquela curva e jogou o carro em cima … eles estavam de costas pro acusado, a depoente estava de frente e saiu correndo … o acusado passou e jogou tudo pra cima … fez um contorno na contramão, derrubou a moto do patrão da depoente tentando dar a ré, entrou de novo, aí nisso o acusado ficou agarrado … o patrão da depoente foi lá … foi tentando abrir a porta do carro, tentando tirar o acusado de dentro do carro … eles não conseguiram tirar o acusado, que conseguiu fazer a ré e passar em cima da vítima de novo …” (g.n.)

 

A testemunha Rodrigo Morais Baldutti, dono do bar onde ocorrera os fatos, confirmou em juízo que o acusado foi o autor dos fatos (CD – fl. 494):

 

“… presenciou o fato descrito na denúncia … estava do lado de dentro do bar na hora do ocorrido, o pessoal da Maria Lúcia pediu para encerrar a conta, e nisso o depoente entrou no bar para poder fechar a comanda … escutou o barulho e quando levantou, era o acusado que tinha entrado dentro da calçada com o veículo, jogando mesa pro alto, atropelou o pessoal alidepoente viu o acusado na direção do carro com o carro em cima da calçada, e tem certeza absoluta que era o acusadoo acusado subiu na calçada, passou a primeira vez, pegou o pessoal, e, o depoente acha, ele deu uma ré novamente, pegou mais uma vez, depois deu mais um contorno, aí bateu na parede do bar, e deu a ré, e nisso o depoente até tentou abrir a porta para ver se ele conseguia tirar o acusado da condução, mas não conseguiram …” (g.n.)

 

Em juízo, o denunciado confessou ser o autor do atropelamento, porém negou a intenção de matar, apresentando a seguinte versão aos fatos ( CD- fl. 496):

 

“… confessa os fatos, mas não como eles estão narrados na denúncia … foi somente um acidente … o interrogando teve um relacionamento normal com Maria Lúcia, eles saiam juntos só assim, e durou pouco tempo … ele estava fazendo o retorno bem devagar, não estava correndo, aí lhe deu um mal súbito, que ele não sabe o que foi que aconteceu com ele … aí subiu em cima da rampa … bateu nas mesas, mas ele não viu quem estava nas mesas, ele não bateu o carro direcionado à Maria Lúcia, o interrogando não estava com intenção de matar ninguém … não saiu com o carro e voltou … o carro parou … na hora que bateu, ele parou em frente as mesas, que caíram … o interrogando ficou meio tonto, bem tonto mesmo, na hora que ele abriu o olho que ele viu uma porção de gente em cima do capô do carro, alguém tentando abrir a porta … o interrogando ficou com medo de ser linchado … ele colocou ré no carro … bateu a traseira do carro … na parede do bar … nunca passou em cima de ninguém, não retornou e passou em cima de ninguém … não fugiu do local, ele só saiu do local pois estava com medo de ser linchado … foi realmente um acidente, uma coisa na hora que lhe aconteceu que ele não sabe o que, coisa de segundos … não tinha intenção de matar ninguém …” (g.n.)

 

 

Desta feita, exsurgindo do conjunto probatório mais de uma versão para os fatos, sendo uma delas indiciária de que o acusado tinha intenção de matar a vítima Maria Lúcia e agiu com dolo eventual em relação às outras vítimas, imperiosa é a pronúncia, maxima venia, já que nesta fase, no âmbito do Tribunal do Júri, vigora o princípio do in dubio pro societate, de forma que a dúvida sempre se resolve em favor da sociedade, autorizando a remessa da demanda ao Conselho de Sentença, órgão constitucionalmente competente para julgá-la.

 

Assim, rejeito, data venia, as pretensões da Defesa, pois presentes os requisitos do artigo 413, do CPP, uma vez que a prova oral acima, indicia que o acusado agiu com a intenção de matar a vítima Maria Lúcia e assumiu o risco de matar as demais. Neste sentido:

 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO - PRESENÇA DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA (…) DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR OU LESÃO CORPORAL - NÃO CABIMENTO (…) Para a pronúncia não são exigidos os mesmos critérios valorativos dispensados à formação da convicção condenatória (…) A desclassificação do delito de tentativa de homicídio para lesões corporais só é possível quando existirem nos autos provas seguras e inequívocas de que o réu agiu sem animus necandi, devendo seu acurado exame ficar a cargo do Tribunal do Júri, juiz natural competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (…) (TJMG - Rec em Sentido Estrito 1.0432.08.016686-6/001, Relator Des Flávio Leite, 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 24/01/2017, publicação da súmula em 03/02/2017).

 

As qualificadoras do feminicídio e meio que impossibilitou as defesas das vítimas estão diretamente relacionadas à dinâmica do evento, não sendo manifestamente improcedentes, na medida em que há indícios de que o denunciado agiu em contexto de violência doméstica, por razões de sexo feminino, motivado por não aceitar o término do relacionamento amoroso que mantinha com a vítima Maria Lúcia, tendo surpreendido todas as vítimas em um bar com o atropelamento. Portanto, devem ser mantidas nesta fase processual, de forma a serem analisadas pela vontade soberana do Tribunal Popular, nos termos da Súmula 64 do TJMG. A propósito:

 

PENAL E PROCESSUAL PENAL - HOMICÍDIO QUALIFICADO - SENTENÇA DE PRONÚNCIA - DECOTE DAS QUALIFICADORAS (…) INDÍCIOS SUFICIENTES - QUALIFICADORAS MANTIDAS - RECURSO NÃO PROVIDO. O decote de qualificadora ainda na fase de pronúncia somente é cabível na hipótese de manifesta improcedência, porquanto não pode o Magistrado Sumariante retirar do Conselho de Sentença a possibilidade de decidir pela sua incidência. Recurso não provido (TJMG - Rec em Sentido Estrito nº 1.0486.09.021105-4/001, Relator Des. Corrêa Camargo, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 02/08/2017, publicação da súmula em 09/08/2017)”

 

Isto Posto, admito a acusação e PRONUNCIO JOSÉ MARTINS para que seja levado a julgamento popular pelos delitos previstos nos artigos 121, § 2º, IV e VI, § 2º-A, I e § 7º, III c/c 14, II, do Código Penal (em relação à vítima Maria Lúcia Nunes da Silva) e 121, § 2º, IV, c/c 14, II, (em relação as demais vítimas), do Código Penal.

 

Inalterados os fatos e fundamentos da sua prisão, por ter permanecido foragido por quase 02 anos, e considerando a gravidade da sua conduta, demonstrada no modus operandi, para garantia da aplicação da Lei Penal e da Ordem Pública, nego-lhe o direito de aguardar o julgamento em liberdade.

 

P.R.I.

 

Juiz de Fora, 26 de janeiro de 2018.

 

 

Paulo Tristão Machado Júnior

Juiz de Direito