SENTENÇA

 

 

Processo n. 0024.09.594.663-8

Parte Autora: Leonardo Pereira Furman

Parte Ré: Via Itália Comércio e Importação de Veículos Ltda.

 

Vistos etc...

Trata-se de ação proposta por Leonardo Pereira Furman em face da Via Itália Comércio e Importação de Veículos Ltda., partes qualificadas e representadas nos autos.

Aduz a parte autora, em apertada síntese, que na data de 12/02/2009 adquiriu junto a uma das concessionárias da ré uma Ferrari F-430, seminova, ano/modelo 2006, com identificação alfanumérica FJL-0430, pelo preço de R$1.170.000,00. Assevera, no entanto, que citado veículo se encontrava acoimado de vícios de qualidade que o tornaram inadequado ao uso, notadamente em razão de já ter se envolvido em um grave acidente automobilístico, informação que lhe foi ocultada quando da aquisição.

Diante desse contexto, alega ter experimentado intensos dissabores e frustração, razão porque ajuizou a presente ação, objetivando ser indenizado por danos morais e materiais, consistentes nos gastos havidos com a compra do automóvel, pagamento de imposto (IPVA), seguro DPVAT, revisão do bem e, ainda, as despesas com parecer técnico para constatação dos vícios.

Outrossim, requereu a inversão do ônus da prova e, ainda, a sustação cautelar dos cheques emitidos para pagamento do veículo.

Com a inicial vieram os documentos de f. 22/111.

Proferida decisão inicial, este Juízo concedeu a cautela requerida, para determinar que os cheques emitidos pelo autor não fossem compensados até o julgamento final da demanda, ficando, contudo, o valor respectivo garantido pelo automóvel descrito. Determinou, ao final, a citação da parte ré para os termos do processo (f. 120/121).

Termo de caução às f. 124.

Citada (f. 126/126v), a parte ré apresentou resposta com documentos.

Em contestação (f. 187/208), arguiu preliminar de carência da ação por falta de interesse de agir e impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, verberou que já havia se operado o transcurso do prazo decadencial para que o autor reclamasse dos vícios apontados na peça de ingresso. Quanto ao mais, ponderou que sua conduta não se encontra acoimada de ilegalidade, na medida em que apresentou ao requerente todas as informações sobre o automóvel acima referenciado. Ressaltou, ainda, que os valores perseguidos pelo promovente a título de indenização são “abusivos” e, subsidiariamente, acaso sobrevenha condenação, formulou considerações acerca de cada um dos pleitos autorais.

Em reconvenção (f. 209/236), reiterou os termos constantes na contestação, e, assim, pugnou pela condenação da parte autora ao pagamento da quantia remanescente do bem, acrescida de juros de mora, correção monetária e da multa prevista no art. 4º do contrato de compra e venda. Alternativamente, bateu-se pela devolução da Ferrari F-430, de placa FJL-0430. Além disso, requereu antecipação dos efeitos da tutela, para que fosse determinado o imediato pagamento dos valores devidos pelo autor, ainda que mediante depósito judicial, ou, então, para que fosse determinada a “transferência da posse” do automóvel.

A antecipação de tutela requerida pela parte ré na reconvenção foi indeferida, consoante decisão lançada às f. 226.

Contestação à reconvenção às f. 321/340.

Réplica às f. 401/407.

Em manifestação, a parte ré formulou pedidos cautelares para que o processo tramitasse em segredo de justiça e para que o autor se abstivesse de dar entrevistas sobre o caso sub examine, pedidos estes que foram indeferidos, a teor da decisão de f. 238.

Designada audiência preliminar, não foi possível uma composição (f. 318).

Instadas a especificarem provas, ambas as partes pugnaram pela produção de prova testemunhal e pericial, sendo que a ré requereu, ainda, a “lacração do bem” e o depósito de suas chaves em Juízo (f. 341/342 e 343).

Determinada a produção da prova pericial (f. 319), sobreveio aos autos o Laudo Pericial de f. 451/525, sobre o qual se manifestaram os litigantes às f. 529/538 e 565/574.

A parte ré apresentou parecer exarado por assistente técnico (f. 540/564).

O ilustre Perito nomeado por este Juízo prestou esclarecimentos a pedido da requerida (f. 577/591).

Em decisão saneadora (f. 593/594), foram afastadas a preliminar de carência da ação e a prejudicial de decadência, restando deferida a produção de prova testemunhal.

Opostos embargos de declaração, estes foram parcialmente acolhidos, para fins de deferir a “lacração do automóvel” discutido nos autos, por intermédio de oficial de justiça.

Realizada audiência de instrução e julgamento, foram ouvidas duas testemunhas arroladas pelo autor (f. 619/623). As testemunhas da ré foram inquiridas por carta precatória (f. 665 e 682/684).

Encerrada a instrução do processo (f. 702), as partes apresentaram alegações finais em forma de memoriais (f. 704/717 e 718/729).

É o relatório. Decido.

Não existem irregularidades e nulidades arguidas pelas partes ou que devam ser reconhecidas de ofício, presentes os pressupostos processuais e as condições da ação.

O caso dos autos contempla relação de consumo, porque de um lado se encontra a empresa requerida, fornecedoras de produtos e serviços (artigo 3o da Lei 8078 de 1990) e, de outro, o autor, destinatário final daqueles (artigo 2o da Lei 8078 de 1990). Disso resulta que o diploma legal apto a reger a relação jurídica em debate é o Código de Defesa do Consumidor.

Pois bem.

De um lado, a parte autora alega ter adquirido, em uma das concessionárias da ré, automóvel eivado de vícios que o tornaram imprestável para o uso à que se destinava, especialmente porque a promovida não lhe informou que o bem (de valor considerável, diga-se de passagem), já esteve envolvido em um gravíssimo acidente automobilístico.

De outra banda, a parte ré combate em sua totalidade a pretensão deduzida da inicial, registrando que o autor sabia que estava adquirindo automóvel “usado”; que o veículo foi vendido em perfeitas condições de uso; que foram prestadas todas as informações necessárias no momento da compra; e que sua conduta está revestida de legalidade.

Ora, sabe-se a mais não poder que é ônus da parte autora produzir prova sobre os fatos constitutivos do seu direito (artigo 333, I, do Código de Processo Civil). Contudo, em se tratando de relação de consumo, prevê o artigo 6o do Código de Defesa do Consumidor a facilitação da defesa dos direitos do consumidor em Juízo, inclusive com a inversão do ônus da prova quando, a critério do Juiz, restar evidenciada a verossimilhança das alegações da parte, ou, ainda, quando ela for hipossuficiente.

Doutrina e jurisprudência são uníssonas ao entender que basta a existência de um dos mencionados requisitos para que seja possível a inversão e, no caso dos autos, entendo que restou comprovada, em parte, a hipossuficiência (técnica) do requerente, conceito que não se pode confundir com pobreza, conforme preleciona o Desembargador Rizzatto Nunes:

 

O significado de hipossuficiência do texto do preceito normativo do CDC não é econômico, é técnico. (…) Hipossuficiência, para fins de possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedade, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc. Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais “pobre”...” (NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 836)

 

Bem por isso, no que pertine aos pedidos de indenização por danos materiais e morais, tem-se que referidas tutelas dependem, primordialmente, de provas que o próprio autor pode produzir, sem maiores embaraços ou dificuldades. É que não há qualquer empecilho para que o consumidor demonstre eventual vício incidente no bem por ele adquirido, e nem, tampouco, a ocorrência e a extensão dos danos suportados (sejam eles materiais ou extrapatrimoniais). Dessa forma, no tocante aos pedidos indenizatórios, entendo não haver respaldo para autorizar a pretendida inversão do ônus da prova.

Lado outro, em razão de o suplicante alegar que a parte ré foi omissa ao lhe vender o veículo descrito na exordial – porque não apresentou todas as informações concernentes ao automóvel – tenho que, realmente, a requerida possui melhores condições de comprovar as cautelas que empreendeu no momento da venda do sobredito automotor.

Dessa forma, se por um lado a demonstração das perdas e danos depende de prova que poder ser produzida pelo autor, por outro, acredito que as diligências e as informações prestadas durante a formação do ato negocial devem ser demonstradas pela parte ré.

Assim sendo, após uma análise global das provas coligidas, tenho que a pretensão manejada pela parte autora merece recepção. Senão vejamos:

O negócio jurídico entabulado entre as partes para a aquisição da Ferrari F-430 restou suficientemente caracterizado, não havendo qualquer dúvida a respeito. Igualmente, o estado de conservação e o evolvimento do automóvel em acidente de trânsito anterior à data de sua compra também restaram suficientemente evidenciados.

Note-se que o ilustre perito Joaquim Duarte Lage Neto, inscrito no CREA-MG sob o número 25.541/D, ao examinar o automóvel em referência, alcançou as seguintes conclusões:

 

(...) o veículo Ferrari, modelo F430, cor vermelha, placa FJL0430, chassi ZFFEW58A860149782 foi adquirido pelo Sr. Leonardo Pereira Furman em 12/02/2009, da concessionária autorizada Ferrari, Via Itália Comércio e Importação de Veículos Ltda.

O Sr. Leonardo Furman descobriu, através do site youtube que a Ferrari placa FJL0430 havia se envolvido em um acidente em outubro de 2007.

Na época da aquisição nada foi informado ao comprador pela vendedora, que o veículo sofrera um acidente impactante anteriormente.

Peças foram trocadas e serviços executados no veículo Ferrari, placa FJL0430 desde a época que o mesmo acidentou, com 6.570km rodados, até a quilometragem de 10.447Km rodados, conforme ordens de serviços inclusas no laudo pericial.

O acidente sofrido pelo veículo foi impactante, podendo ser verificado pelas fotos, peças e serviços executados, bem como pelo valor do reparo.

No teste de dirigibilidade, não foi constatado nada que afete a sua dirigibilidade em relação ao acidente sofrido pelo veículo. Não se tem comprovação da revisão de manutenção programada aos 10.000Km, uma vez que o veículo encontrava-se na oficina da concessionária, o que constitui falta grave.

Conclui-se, portanto, que o veículo fora acidentado, reparado, e que nada foi informado ao autor na época da compra sobre o acidente, o que pode ser caracterizado como um vício oculto da informação (...)” (f. 494/495).

 

Dessa forma, percebe-se que o veículo, realmente, esteve envolvido em um grave acidente impactante, o que se pode inferir não apenas pela prova técnica, mas também pelos documentos colacionados às f. 40/49, e, ainda, pela prova oral produzida. Isso porque a testemunha Milton Ferreira de Assunção, ao ser inquirida sob o crivo do contraditório, ressaltou que:

 

(...) o autor pagou pela Ferrari a quantia de R$1.170.000,00; que o autor pagou R$300.000,00 e dinheiro, mais o carro Porsche Cayne, no valor de R$120.000,00 e o restante em cheques pré-datados; que eu acho que foram cinco ou seis cheques, mas não sei o valor; que eu trabalho com compra e venda de carros e o meu relacionamento com os meus clientes é direto (…) que eu ajudei o autor a cotar o carro, tendo ele me procurado para saber se eu tinha o carro para vender, se eu conhecia alguém que tinha o carro para vender e quanto valeria a Ferrari que ele estava em vias de comprar (…); que na época eu dei minha opinião para o autor dizendo que a requerida era uma concessionária autorizada da Ferrari, que o veículo era pouco rodado, com 5.000Km e o valor estava dentro do comercializado no mercado (…); que eu fiquei sabendo que a Ferrari havia sido batida através do proprietário da Brava Veículos, situada na avenida Raja Gabáglia, uma vez que o autor foi até lá negociar a Ferrari e o proprietário não quis, afirmando que o veículo era batido (...)” (f. 620/621)

 

Em contrapartida, a parte ré não trouxe qualquer prova de que tenha, efetivamente, comunicado ao autor as particularidades e o histórico da Ferrari F-430 no momento da concretização da compra e venda.

Pelo contrário, as testemunhas arroladas pela ré (todas suas funcionárias), se limitaram a esclarecer que o suplicante sabia que não estava comprando um carro novo, mas que o veículo se encontrava em “perfeito estado” de conservação e em “excelente condição” após os reparos da requerida (f. 665, 682/684).

Com efeito, não se desconhece que o automóvel era “usado”, até mesmo porque o requerente não combateu, em momento algum, a referida condição. Todavia, não se pode olvidar que informar o consumidor de que o bem que ele está prestes a adquirir é “usado” é um fato substancialmente diverso de informá-lo sobre o seu envolvimento em algum sinistro.

Ademais, deve-se ter em mente que o autor realizou investimento substancial ao comprar o veículo descrito neste feito, e pagaria por ele uma quantia superior a um milhão de reais. Exatamente pela excepcionalidade da aquisição, entendo que a parte ré deveria ter se revestido de todas as cautelas possíveis para repassar ao consumidor qualquer informação que fosse relevante para conferir lisura ao ato negocial, obrigação que, inclusive, lhe é imposta por força de Lei, a teor do que dispõe o art. 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, não havendo prova segura de que a ré prestou ao autor informações adequadas e claras sobre as características e sobre a qualidade do veículo, forçoso concluir que sua conduta constitui, sim, um ato ilícito. Via de consequência, devem ser apreciados os pedidos de reparação de danos formulados pela parte autora, até mesmo por ser objetiva a responsabilidade da requerida, inteligência do art. 14, da Lei n. 8.078 de 1990.

No que se refere ao pedido de indenização por danos morais, mister ressaltar que, ao contrário do que se diz comumente nos meios acadêmico e forense, o dano moral não é definido pela existência de dor, sofrimento ou trauma psíquico, que podem ser seus eventuais efeitos, mas não são seus elementos conceituais, até mesmo porque pode haver dano moral sem que se verifiquem os referidos sintomas, conforme lição de Anderson Schreiber:

 

A verdade, no entanto, é que a dor não define, nem configura elemento hábil à definição ontológica do dano moral. Como já demonstrado, tratando-se de uma mera consequência, eventual, da lesão à personalidade e que, por isso mesmo, mostra-se irrelevante à sua configuração. (Novos Paradigmas da Responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 3a ed., São Paulo: Atlas, 2011, p. 202).

 

Juridicamente, o dano moral deve ser conceituado pela ocorrência de lesão a direitos da personalidade. Assim dispõe o artigo 5o, inciso X, da Constituição da República Federativa do Brasil, no qual assegurou o constituinte a reparação por dano moral em caso de lesão à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Contudo, tal rol não é numerus clausus, na medida em que pode ser ampliado. A título exemplificativo, Orlando Gomes arrola, como direitos da personalidade, o direito à vida, ao nome e à liberdade (Introdução ao Direito Civil, 18a ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 153).

Desta feita, não há como se negar que a situação experimentada pelo promovente (adquirir produto por preço superior a um milhão de reais, sem que lhe fossem prestadas informações relevantes acerca de seu histórico e suas condições) é fato ensejador de dano à honra, configurando, de forma reflexa, ofensa gravíssima à dignidade do indivíduo, capazes de ofender seus direitos da personalidade.

Nesse contexto, tem-se como certo o dever de compensar.

Em casos análogos, já decidiu o egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:


EMENTA: AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS (...) PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA - INÍCIO DO PRAZO - CIÊNCIA DO VÍCIO - NÃO CONFIGURAÇÃO - VENDA DE VEÍCULO RECUPERADO - AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO AO CONSUMIDOR - DEVER DO FORNECEDOR - APLICAÇÃO DAS NORMAS CONSUMERISTAS - VÍCIO OCULTO - RESCISÃO DO CONTRATO - RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO - SENTENÇA MANTIDA. (…) Disciplina o Código de Defesa do Consumidor que o fornecedor, parte mais forte na relação de consumo, deve atuar com lealdade e probidade, seguindo os parâmetros ditados pela boa-fé objetiva. -Compete ao fornecedor o dever de informar ao consumidor que o bem em discussão se tratava de veículo sinistrado e recuperado, não podendo alegar a ignorância sobre os vícios apresentados, nos termos do art. 23 do CDC.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0672.12.009389-9/002, Relator(a): Des.(a) Wanderley Paiva , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/07/2015, publicação da súmula em 21/07/2015).

 

No que tange ao quantum indenizatório, várias são as discussões doutrinarias e jurisprudenciais sobre o tema, não havendo até o momento pacificação. Isso ocorre porque o Código Civil não contempla o caráter punitivo da condenação por danos extrapatrimoniais, e dificilmente algum advogado conseguiria demonstrar de onde se pode extrair tal caráter.

Consoante preleciona Maria Celina Bodin de Moraes:

 

A opção brasileira foi no sentido de não se adotar caráter punitivo na reparação do dano. Do Código de Defesa do Consumidor ele foi excluído pelo veto presidencial. O artigo que o contemplava dispunha o seguinte: “Art. 16. Se comprovada a alta periculosidade do produto ou serviço que provocou o dano, ou grave imprudência, negligência ou imperícia do fornecedor, será devida multa civil de até um milhão de vezes o Bônus do Tesouro Nacional, ou índice que venha a substituí-lo (...) a critério do juiz, de acordo com a gravidade e a proporção do dano, bem como a situação econômica do responsável.” Nas razões do veto, se disse: “O art. 12 e outras normas já dispõem de modo cabal sobre a reparação do dano sofrido pelo consumidor (...)”. (MORAES, Maria Celina de Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 4a tir., Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 217-218).

 

Assim sendo, a boa técnica não permite que este Juízo arbitre o valor da compensação devida tomando por escopo parâmetros de natureza sancionatória. É que não há amparo no ordenamento jurídico pátrio para adoção da medida, já que aqui não se verifica a figura dos Punitive Damages americanos.

Por conseguinte, impõe-se a aplicação das regras gerais do Código Civil, cujo parâmetro para fixação do quantum é a extensão do dano perpetrado, nos termos do artigo 944 do Código Civil. In casu, o autor cuidou de trazer ao feito elementos mais do que suficientes para confirmar a dimensão da lesão por ele experimentada. É o que se observa, por exemplo, do depoimento prestado pela testemunha Salvador Villani, que destacou:

 

(...) que o autor havia passado por um momento difícil, por uma doença grave que hoje se encontra recuperado; que naquele dia o autor não disse o que ia comprar, mas comentou comigo que na semana seguinte veria o que ele compraria; que passado um ou dois dias, liguei para o autor para dar-lhe satisfação dos R$80.000,00, foi quando ele me disse por telefone que havia comprado um brinquedo novo, foi quando ele me falou da Ferrari vermelha; que o autor comentou comigo que havia na bolsa R$400.000,00, sendo R$80.000,00 para acertar com o depoente e o restante para começar a realizar o seu sonho (...)” (f. 622/623).

 

No mesmo sentido foi o depoimento da testemunha Milton Ferreira de Assunção. Confira-se:

 

(...) que posteriormente o autor também me contou que a Ferrari havia sido batida, tendo eu aconselhado que ele procurasse o revendedor; que a informação correu a cidade e o Leonardo demonstrou-se chateado, deprimido pelo acontecido (...)” (f. 620/621).

Nesses termos, observadas as peculiaridades do caso, e atento ao fato de que o valor da indenização por danos morais não pode ser fonte de enriquecimento ilícito da parte lesada, entendo como razoável para a compensação a quantia de R$25.000,00.

Quanto ao pedido de indenização por danos materiais, este também merece prosperar, mercê de o autor ter suportado uma série de despesas decorrentes da aquisição do automóvel, despesas estas que, muito provavelmente, não lhe seriam oponíveis acaso a requerida houvesse prestado todas as informações necessárias sobre o histórico da Ferrari F-430 (já que o negócio não haveria se concretizado, conforme ponderou o próprio requerente).

Assim, havendo prova documental que quantifique as despesas havidas com o seguro DPVAT; com o IPVA; com a revisão automotiva e com o parecer técnico para constatação de vícios (f. 28/32, 36/49 e 115/116), referidas despesas devem ser restituídas ao promovente, acrescidas de juros moratórios e correções legais.

No que se refere à restituição do valor pago pelo automóvel, também este pedido deve ser julgado procedente, afinal, a existência de vício no veículo, aliada à prestação inadequada dos serviços da ré, revelaram-se fatores que não apenas frustraram as expectativas do consumidor, como, também, acabaram viciando a sua vontade durante a celebração do ato negocial.

De rigor, portanto, que a ré reembolse ao promovente os valores efetivamente pagos pela Ferrari F-430.

Novamente, trago à lume a jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais:


EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO RECUPERADO. INFORMAÇÃO OMITIDA AO CONSUMIDOR. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. VÍCIO NO NEGÓCIO. RESCISÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA. RESTITUIÇÃO INTEGRAL DOS VALORES PAGOS PELO ADQUIRENTE. Faz jus o comprador à restituição integral dos valores pagos comprovada a falha na prestação do serviço pela vendedora que omitiu informação relevante para a concretização do negócio jurídico. (...)”  (TJMG -  Apelação Cível  1.0027.10.008573-0/001, Relator(a): Des.(a) José Marcos Vieira , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 17/07/2014, publicação da súmula em 28/07/2014)

 

Por fim, no que se refere aos pedidos constantes na reconvenção oposta pela parte ré (f. 209/236), vejo que não há como condenar o autor ao pagamento da quantia remanescente do bem adquirido, quanto mais acrescida da multa prevista no art. 4º do contrato de compra e venda celebrado. É que mencionado rogo encontra óbice no próprio reconhecimento do direito reivindicado pela parte autora na inicial, restando, portanto, insuperavelmente prejudicado.

Por outro lado, o pedido alternativo para que a Ferrari F-430, de placa FJL-0430, seja devolvida à ré, pode sim, ser recepcionado, por ser desdobramento lógico da opção eleita pelo autor, qual seja: reaver o dinheiro desembolsado com a compra e venda do veículo.

Pelo exposto, e por tudo mais que dos autos consta, julgo procedente a pretensão deduzida da inicial e, assim, extingo o processo, com resolução de mérito, nos termos do art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil, para fins de:

a) Confirmar a decisão de urgência lançada às f. 119/121 e condenar a parte ré a reembolsar à parte autora o valor que foi efetivamente pago na aquisição do veículo Ferrari, modelo F430, de cor vermelha, placa FJL0430 e chassi ZFFEW58A860149782, descontada a quantia referente aos títulos de crédito sustados por força da decisão de f. 119/121. O valor total poderá ser apurado em liquidação por artigos, se for o caso, e deverá ser acrescido de juros de mora de 1% ao mês, desde a citação, e corrigido monetariamente de acordo com a tabela da Corregedoria-Geral de Justiça, a contar do desembolso respectivo.

b) Condenar a parte ré a reembolsar à parte autora todas as despesas havidas com o pagamento do seguro DPVAT, IPVA, revisão automotiva e parecer técnico para constatação de vícios (f. 28/32, 36/49 e 115/116), despesas estas que poderão ser liquidadas por simples cálculos aritméticos, uma vez acostados aos autos os comprovantes de desembolso. A quantia devida deverá ser acrescida de juros de mora de 1% ao mês, desde a citação, e corrigida monetariamente, de acordo com a tabela da Corregedoria-Geral de Justiça, a contar do desembolso.

c) Condenar a parte ré a pagar à parte autora a quantia de R$25.000,00, à título de indenização por danos morais, verba que deverá ser acrescida de juros de mora de 1% ao mês, desde o evento danoso (Súmula 54 do STJ) e corrigida monetariamente, de acordo com a tabela da Corregedoria-Geral de Justiça, a partir desta decisão (Súmula 362 do STJ).

Julgo parcialmente procedente os pedidos deduzidos na reconvenção, tão-somente para condicionar a restituição do valor pago pela Ferrari, modelo F430, de cor vermelha, placa FJL0430 e chassi ZFFEW58A860149782, à devolução do citado bem, mediante recibo.

Considerando a ínfima sucumbência da parte autora, condeno apenas a parte ré ao pagamento das despesas processuais e de honorários advocatícios, os quais fixo, a teor do art. 20, § 3o, do Código de Processo Civil, em 15% sobre o valor total da condenação.

Transitada em julgado, feito às anotações e comunicações devidas, arquivar com baixa no SISCOM.

P.R.I.

Belo Horizonte, MG, 27 de agosto de 2015

 

Renato Luiz Faraco

Juiz de Direito da 20a Vara Cível