PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
COMARCA DE BELO HORIZONTE
7ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA E AUTARQUIAS
PROCESSO: 0024.13.184.340-1
Autor: PAULO ANTÔNIO DA SILVA
Réu: ESTADO DE MINAS GERAIS
S E N T E N Ç A
INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS E MATERIAIS – SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA – SURGIMENTO DE NOVAS PROVAS – ABSOLVIÇÃO EM REVISÃO CRIMINAL – ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO ESTADO – PRECEDENTE DO STF – QUANTIFICAÇÃO – MÉTODO BIFÁSICO DE ARBITRAMENTO – CUMULAÇÃO DANO MATERIAL E IMATERIAL – POSSIBILIDADE SUMULADA PELO STJ – PEDIDO JULGADO PROCEDENTE.
- Os atos jurisdicionais equivocados, quando praticados de forma não intencional, ensejam a responsabilidade do Estado, porém em caráter excepcional, aplicando-se a necessária cautela para o seu reconhecimento.
- Restando comprovado, na espécie, que o cárcere do requerente decorreu de ato de jurisdição, afigura-se presente o liame de causalidade a sustentar o dever do Estado de indenizar o dano moral. Presente a possibilidade de cumulação de pedidos por danos materiais, devidamente comprovados.
I – RELATÓRIO
Vistos etc.
PAULO ANTÔNIO DA SILVA ajuizou a presente ação ordinária em face do ESTADO DE MINAS GERAIS.
Informa ter sido denunciado pela prática de dois crimes cometidos em 15 de abril de 1994 e 22 de abril de 1997. Posteriormente foi condenado a uma pena de 30 (trinta) anos de prisão, em sentença prolatada em 23 de setembro de 1997.
Relata que, em sede de apelação, foi absolvido de um dos crimes, tendo sido reduzida sua condenação para 16 (dezesseis) anos de reclusão em regime fechado.
Afirma que passou a cumprir pena privativa de liberdade, tendo sido beneficiado com livramento condicional em 04 de maio de 2012.
Alega que, em maio de 2012, após o surgimento de novas provas, aviou pedido de revisão criminal, o qual foi integralmente acolhido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, declarando, consequentemente, a sua inocência.
Discorre sobre questões de fato e de direito e, ao final, requer a indenização por danos morais e materiais pelo período em que ficou efetivamente encarcerado, bem como pelo período em que cumpriu pena em regime de prisão domiciliar.
Pugna, ainda, pelos benefícios da assistência judiciária gratuita.
À inicial foram juntados os documentos de f. 18/182.
Deferido o pedido de justiça gratuita à f. 183.
Devidamente citado às f. 186/187, o réu apresentou contestação alegando, em síntese, não haver responsabilidade objetiva do Estado, mas que se verifica, na espécie, a existência da responsabilidade subjetiva, que deve ser baseada na culpa ou dolo do agente estatal (f. 189). Argumenta, ainda, o réu, que todo o conjunto de servidores públicos agiu no estrito cumprimento do dever legal, concluindo que não é o caso de se responsabilizar o Estado pelos danos que o autor alega ter sofrido. Ao final, requer sejam julgados totalmente improcedentes os pedidos formulados.
Documentos juntados à contestação às f. 198/780.
Impugnação às f. 781/783.
Na fase de especificação de provas, o réu informou não ter outras provas a serem produzidas, enquanto o autor quedou-se inerte.
A seguir, os autos vieram-me conclusos.
Relatados. Decido.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. DO MÉRITO
Trata-se de ação ordinária em que a parte autora pleiteia o recebimento de indenização por danos morais e materiais, em razão da malsinada condenação imposta pela Justiça e posteriormente cassada em sede de revisão criminal.
A parte ré contesta às f. 188/197, alegando não ser o caso de responsabilização estatal. Aduz ainda, a parte ré, que o valor da indenização pretendida é exacerbado, o que configuraria enriquecimento ilícito.
Assim, o tema controverso ora em discussão é se há responsabilidade do Estado, bem como o quantum debeatur em caso de ser afirmativa a resposta à questão anterior.
DA REVISÃO CRIMINAL
“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” (KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 07)
Nem mesmo Franz Kafka (1883–1924), célebre escritor tcheco de origem alemã, autor da obra de ficção O Processo (1925), poderia imaginar como seria a vida de Paulo Antônio Silva a partir de 1º de abril de 1997.
Quisera ele, “Paulo Porteiro” (f. 24), acreditar que irônica e paradoxalmente aquele seria verdadeiramente o dia da mentira. Reconhecido por duas crianças violentadas, traumatizadas, amedrontadas e pressionadas pelos seus próprios sentimentos, Paulo é preso e deixa o convívio do lar, o trabalho, seus amigos, sua vida e sua dignidade de lado para viver entre as centenas de pessoas sentenciadas, condenadas ou “simplesmente” presas.
Cinco anos, sete meses e dezenove dias foram mais que suficientes para que Paulo soubesse, como ninguém, o significado da palavra “injustiça”.
Na presente demanda, busca este cidadão a reparação indenizatória pelo fato de ter sido preso e condenado por crime que, efetivamente, não cometeu. E não é apenas a peça inicial que afirma a inocência do autor. Foram os eminentes desembargadores do 1º Grupo de Câmaras Criminais do egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais na data de 11/03/2013 (f. 59/76).
Assim, sobre a mesa deste humilde magistrado, advém concluso para prolação de sentença um processo que extrapola o que Ronald Dworkin (1931–2013), jusfilósofo norte-americano, chama de hard case. Cabe a este julgador dizer o direito às partes: se há, ou não, o dever de indenizar, bem como estabelecer o quantum suficiente para a reparação da dor, da perda da liberdade e da própria dignidade humana.
De um lado “Paulo Porteiro” se diz vítima de um erro estatal. De outro, o réu afirma (f. 188/197) não haver RESPONSABILIDADE OBJETIVA do Estado, ancorada na simples relação de causa e efeito entre o comportamento administrativo e o evento danoso, mas que se verifica, na espécie, a existência da RESPONSABILIDADE SUBJETIVA, que deve ser baseada na culpa ou dolo do agente estatal (f. 189). Argumenta, ainda, o réu, que todo o conjunto de servidores públicos (agentes policiais, promotoria de justiça, magistratura etc.) agiu no estrito cumprimento do dever legal, pois “o Autor, como qualquer outro cidadão, pode ser acionado e julgado pelo Poder Judiciário, podendo vir a ser condenado ou absolvido, uma vez que o ius puniendi é inerente à atividade estatal” (f. 191), concluindo que “NÃO É O CASO DE SE RESPONSABILIZAR O ESTADO pelos danos que o Autor alega ter sofrido” (f. 195). Finalmente, ao tratar do quantum indenizatório, considera exacerbado o valor pedido na inicial, uma vez que “Tratando-se de dinheiro público, a prova há de ser firme a balizar o atuar do Poder Judiciário, de modo a não incentivar aventureiros em busca de enriquecimento sem causa, em detrimento, muitas vezes, de quem efetivamente comprova possuir razão em sua pretensão” (f. 195/196) (negritos no original).
Em que pesem os argumentos da jovem e combativa Procuradora do Estado, a doutrina e a jurisprudência mais moderna e atualizada aduzem o contrário. Uma condenação injusta é prejudicial não somente ao réu, mas também à sociedade, que passa a desacreditar da Justiça. A responsabilização do Estado é objetiva, conforme será demonstrado a seguir.
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil do Estado é um dos temas mais controversos e complexos do ordenamento jurídico – não só brasileiro, mas também estrangeiro. O grande número de aspectos que deve ser levado em consideração, ao mesmo tempo em que enriquece o estudo da matéria, apresenta expressivas dificuldades com respeito à sua aplicabilidade em cada caso a ser examinado.
Inicialmente cumpre fazer uma breve análise do que vem a ser a responsabilidade objetiva e a responsabilidade subjetiva. A comparação entre as duas espécies indicará o caminho a ser seguido na aplicação da norma ao presente caso.
Bem, para que seja configurada a responsabilidade civil subjetiva, é necessário que se faça presente um elemento formal (violação de um dever jurídico mediante conduta voluntária); um elemento subjetivo (dolo ou culpa); e, ainda, um elemento causal-material (nexo de causalidade entre a conduta e o dano). Isso vale dizer que, quando há responsabilidade subjetiva, a vítima só poderá obter a reparação do dano sofrido se provar cabalmente o nexo causal entre o dano sofrido e a conduta culposa ou dolosa do agente.
Esses três pressupostos, conjuntamente, formam o que o Código Civil de 2002 denomina, em seu art. 186, um ato ilícito. Vejamos:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Nesse sentido, insta ressaltar que o cometimento de um ato ilícito enseja o consequente dever de indenizar previsto no art. 927 do mesmo Diploma Legal, in verbis:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Existem, porém, hipóteses em que a responsabilidade civil subjetiva pode ser afastada. São os casos em que se verificam eventuais excludentes de ilicitude.
No magistério do ilustre Mestre Sérgio Cavalieri Filho, em seu Programa de Responsabilidade Civil, aprendemos que:
“O art. 188 do Código Civil prevê hipóteses em que a conduta do agente, embora cause dano a outrem, não viola dever jurídico, isto é, não está sob censura da lei. São causas de exclusão da ilicitude.
(...)
O exercício regular de um direito - o nome já diz - é o direito exercido regularmente, normalmente, razoavelmente, de acordo com seu fim econômico, social, a boa-fé e os bons costumes. Quem exerce seu direito subjetivo nesses limites age licitamente, e o lícito exclui o ilícito. O direito e o ilícito são antíteses absolutas, um exclui o outro; onde há ilícito não há direito; onde há direito não há ilícito. Vem daí que o agir em conformidade com a lei não gera responsabilidade civil ainda que seja nocivo a outrem - como, por exemplo, a cobrança de uma dívida, a propositura de uma ação, a penhora numa execução forçada. Mas, se o direito tem que ser exercido regularmente, pode se transformar em ato ilícito se e quando seu titular exceder (manifestamente) os limites estabelecidos pela lei. Tem-se, então, o abuso do direito, ato ilícito conceituado no art. 187 do Código Civil.
A legítima defesa de que aqui se trata é aquela mesma definida no art. 25 do Código Penal. O agente, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Ninguém pode fazer justiça pelas próprias mãos, essa é a regra básica. Em certos casos, entretanto, não é possível esperar pela justiça estatal. O agente se vê em face de agressão injusta, atual ou iminente, de sorte que, se não reagir, sofrerá dano injusto, quando, então, a legítima defesa faz lícito o ato, excluindo a obrigação de indenizar o ofendido pelo que vier a sofrer em virtude da repulsa à sua agressão.
O estado de necessidade ocorre quando alguém deteriora ou destrói coisa alheia, ou causa lesão em pessoa, a fim de remover perigo iminente. O ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tomarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para remoção do perigo. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2012.)
Colocadas as bases do que é a responsabilidade subjetiva, bem como quais são as causas de seu afastamento, é preciso entender agora que a responsabilidade objetiva, por seu turno, exclui um dos elementos da espécie anterior, qual seja, o dolo ou a culpa. Assim, tratando-se desta segunda espécie, basta que exista o evento danoso e que seja estabelecido o nexo de causalidade entre a conduta voluntária e o resultado de dano.
Consolidado o entendimento das diferenças entre os tipos de responsabilidades existentes, é preciso avançar a discussão para a responsabilidade civil do Estado.
Muito se tem falado sobre o assunto ao longo da história, notando-se efetivas mudanças no mundo jurídico, partindo da total irresponsabilidade do Estado nos regimes absolutistas – em que vigorava a máxima inglesa “King can do no wrong”, (“O Rei não pode errar”), passando por fases intermediárias em que se começou a admitir a responsabilidade de funcionários públicos, até se chegar às teorias mais democráticas e condizentes com o mundo moderno a respeito da responsabilidade estatal.
O ordenamento jurídico brasileiro, a seu modo, também acompanhou a evolução histórica da matéria. Atualmente, é pacífico o entendimento de que, regra geral, o Estado responde objetivamente pelos danos causados a terceiros. Trata-se da responsabilidade civil pelo risco, enunciada pela teoria do risco administrativo.
Sendo a conduta comissiva (ação), basta a existência do dano e o nexo de causalidade entre o ato e o dano para que haja o dever de indenizar. Por outro lado, sendo a conduta omissiva (omissão), o administrado deverá provar a culpa da Administração.
Quanto à responsabilidade objetiva do Estado, a Constituição Federal prevê em seu art. 37, § 6º que:
“§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Insta ressaltar a particularidade existente nos atos comissivos praticados pela atividade jurisdicional. Ainda que a própria Carta Magna preveja que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;” (art. 5ª, LXXV), ainda resta certa resistência doutrinária e jurisprudencial para que se responsabilize objetivamente o Estado por ato de jurisdição.
Noutro giro, os arts. 621 e 630 do Código de Processo Penal estabelecem a admissão da revisão criminal e o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos:
“Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:
I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;
II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.
Art. 630. O tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos.
§ 1º Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça.
§ 2º A indenização não será devida:
a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder;
b) se a acusação houver sido meramente privada.” (grifei)
Pois bem.
O problema a ser resolvido diz respeito ao texto do art. 621, III, CPP.
Quanto aos dois primeiros incisos não restam dúvidas que configuram erros judiciários, porém à hipótese do inciso III não se pode afirmar o mesmo, já que as “novas provas” têm o condão de alterar a coisa julgada sem que haja propriamente um “erro judiciário”, mas sim a alteração de uma decisão até então adequada ao que se apresentava nos autos do processo.
Em que pese a doutrina mais conservadora isentar o Estado de responsabilidade por atos jurisdicionais praticados pelos juízes, é preciso observar atentamente a particularidade de cada caso. A análise da presente demanda requer uma rápida digressão histórica para melhor elucidar a questão.
Doutrinadores como José Cretella Júnior, brilhante administrativista brasileiro, há muito já advoga a tese da responsabilidade do Estado por atos judiciais, como se vê em O Estado e a Obrigação de Indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980, escrito há mais de trinta anos:
“Não militam a favor da irresponsabilidade do Estado, por atos judiciais, nem o argumento da soberania, nem o da incontrastabilidade da coisa julgada. Em primeiro lugar, porque soberano é o Estado; em segundo lugar porque a coisa julgada pode ser atacada no cível pela rescisória, ou pela revisão criminal” (p. 277)
Caio Mário, um dos mais admiráveis civilistas brasileiros, em sua obra Responsabilidade Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 142, assim leciona desde os anos 1990:
“Não se pode no direito moderno, em que o mundo inteiro proclama a preeminência dos direitos humanos, aceitar que a regra da imunidade deixe ao desamparo os direitos e interesses do indivíduo. A segurança e a estabilidade sociais consideram que a responsabilidade civil pela atuação jurisdicional existe, mas somente se há de aceitar com caráter de excepcionalidade”
Mais recentemente, já no século XXI, é no ensinamento do ilustre Professor Yussef Said Cahali que se nota a defesa mais enfática a respeito do instituto. Em sua exemplar obra Responsabilidade Civil do Estado. 3ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2007 afiança:
“a irreparabilidade dos danos causados pelos atos judiciais, sem embargo da concessão feita à reparabilidade dos danos resultantes do erro judiciário, constitui o último reduto da teoria da irresponsabilidade civil do Estado.” (p. 469)
As vozes dos doutrinadores citados não eram isoladas nos respectivos anos 1980, 1990 e início dos anos 2000. Os acompanhavam ilustres juristas como, por exemplo, o baiano João Nunes Sento Sé (Responsabilidade civil do Estado pela atividade judiciária da Constituição de 1988) e até mesmo Hely Lopes Meirelles (1917–1990), após o advento da Constituição Cidadã de 1988. O já falecido Mestre vaticinou em seu Direito Administrativo. 15ª ed., 1990, p. 554: “O ato judicial típico, que é a sentença, enseja responsabilidade civil da Fazenda Pública, como dispõe, agora, a Constituição de 1988, em seu art. 5º, LXXV.”
O entendimento da irresponsabilidade estatal há de ser superado pelo Estado Democrático de Direito, sob o risco de não ser atingido o ideal de justiça, bem como ferir de morte o princípio da dignidade humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Embora exista previsão legal de que o juiz responderá por perdas e danos quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude, ou quando recusar, omitir, retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte (art. 133, CPC), fora dessas hipóteses, fica isento não só o magistrado, mas também o próprio Estado.
Ora, o exercício jurisdicional está sujeito à falibilidade assim como qualquer outra atividade humana. Não é possível admitir em pleno Século XXI que, falhando o juiz, o administrado fique sem o seu direito à reparação.
Assentir com tal posicionamento configura um flagrante desrespeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, pois confere ao Poder Público um patamar de intangibilidade frontalmente contraditório à Constituição Federal.
Não se quer com isso afrontar a independência do juiz, pois esta garantia é fundamental para se concretizar o devido processo legal. Não se busca abolir tal peculiaridade, mas sim harmonizá-la com a proposta de responsabilização estatal, aproximando a sociedade do que se entende como justiça.
O ilustre Professor Dirley da Cunha Júnior, em sua “busca por uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição”, defende em sua tese de doutorado, título obtido no ano de 2003, que:
“(...) num Estado Democrático de Direito, o Estado responde por todos os seus atos (administrativos, legislativos e judiciais), quando lesivos a esfera juridicamente protegida do cidadão.”
Ao meu sentir, já não cabe o entendimento da irresponsabilidade do Poder Público, uma vez que o Estado também está subordinado à lei e é não só um sujeito de direitos, mas também de obrigações.
Conjugando o § 6º do art. 37 com o art. 5º, inciso LXXV, ambos da Carta da República, depreende-se que a intenção do constituinte originário foi garantir ao indivíduo a prevalência de seus direitos em face do próprio Estado, concedendo-lhe fundamentos para pleitear o ressarcimento junto ao Poder Público dos danos que tenha sofrido, danos estes que podem originar-se das diversas formas de atuação estatal, incluída aí a prestação da tutela jurisdicional.
No presente caso, assim como em diversos outros em toda parte do País, é notório o prejuízo causado pelas diversas decisões judiciais que não foram, necessariamente, proferidas com dolo ou fraude. Obviamente que não cabe a este juízo cível caracterizar a existência ou não de erro judiciário durante o processo, sob pena de usurpar a competência do juízo criminal, que já se manifestou brilhantemente na revisão criminal.
Ocorre que, na sentença revisional, o que se observa é que o alicerce da fundamentação foi o surgimento de “provas novas” (depoimento das vítimas e posterior reconhecimento do verdadeiro autor dos crimes imputados ao requerente), e não de comprovado erro por parte da jurisdição, o que se amoldaria à irresponsabilidade estatal já longamente debatida.
De fato. Os atos e/ou decisões judiciais ao longo do processo que culminou na condenação do requerente – posteriormente desconstituída na revisão criminal – ocorreram, seguramente, por falhas e/ou erros não intencionais praticados por juízes de primeira e segunda instância. O dano é inegável, a relação causal indiscutível, porém as decisões são perceptivelmente despidas e desafetadas de qualquer contingente subjetivo.
Porém, não é demais enfatizar que as decisões proferidas causaram, sem sombra de dúvidas, danos gravíssimos ou de difícil ou impossível reparação ao autor, que passou quase seis anos encarcerado. Independentemente de dolo ou fraude, a responsabilidade estatal deverá incidir sobre o caso, pois, como já explanado alhures, para a teoria da responsabilidade objetiva há que se perquirir apenas o nexo de causalidade entre o ato e o evento danoso, afastando a necessidade do elemento subjetivo. Ocorrendo o dano em consequência da tutela jurisdicional, incidirá a responsabilidade do Estado e o dever de reparar o mencionado dano.
Cumpre ao Estado assegurar os direitos dos cidadãos, não podendo ele próprio se eximir de tal mister. Do contrário, o próprio Estado restaria sem legitimidade para com a sociedade. Lado outro, o jurisdicionado não pode, nem deve suportar o ônus das decisões equivocadas. O Estado, repita-se, tem o dever de indenizar todo aquele que sofreu prejuízos em decorrência das decisões judiciais manifestamente equivocadas.
Rui Stoco, um dos maiores tratadistas brasileiros sobre responsabilidade civil, trilha um caminho que indica a responsabilidade objetiva do Estado, isentando, todavia, o magistrado que agiu ou tomou decisões com base nas provas dos autos, sem qualquer interferência dolosa ou culposa. A irrepreensível explanação do ilustre Professor, embora pareça citação demasiada longa, não pode deixar de ser reproduzida1:
“Nesses casos [prática de atos jurisdicionais equivocados, porém de forma não intencional], segundo nos parece, a responsabilidade do Estado (e não a responsabilidade pessoal do Juiz) existe, mas em caráter excepcional, impondo-se cautela para o seu reconhecimento e algumas condições. (...) Primeiro, o dano há de decorrer efetivamente de um erro atribuível ao magistrado ou à Câmara ou Turma julgadoras, quer se trate de julgamento em primeira instância, quer pelo tribunal, como instância originária, quer em grau de recurso. Tal erro há de ser a causa eficiente do dano sofrido. Esse dano há de ser efetivo e ficar demonstrado sem rebuços. (...) Desse modo, rescindida a sentença pelo tribunal competente, o interessado deverá ingressar com a ação de indenização contra a Fazenda Pública. (...) Finalmente, cabe obtemperar que, nesses casos de erros involuntários ou não intencionais causadores de danos, a ação de indenização só pode ser intentada contra o Estado, por falha anônima do serviço, pois a responsabilidade pessoal do Juiz só pode ter por supedâneo o dolo ou a fraude, nos estritos termos do art. 133 do CPC. Ainda nesta quadra, cumpre tomar de empréstimo as judiciosas observações de Armando Gomes Leandro, ao obtemperar: “Contudo, essa responsabilidade do Estado por “funcionamento defeituoso do serviço de Justiça” não implica necessariamente uma responsabilidade solidária do Estado e do magistrado, mas antes uma responsabilidade direta e exclusiva do Estado, considerando o princípio geral da irresponsabilidade do magistrado, como bem se acentua na anotação de Gomes Canotilho do STA (O problema da responsabilidade civil do Estado por atos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974.).”
Corroborando a tese defendida por Stoco, ao meu falível entendimento é possível afirmar que, no presente caso, existe a responsabilidade objetiva do Estado, ainda que inexista “erro judiciário” propriamente dito, pois a revisão criminal julgada procedente foi fundamentada em “provas novas”.
Assim como a doutrina, a jurisprudência brasileira também começa a se posicionar de uma maneira mais ampla e democrática quanto ao direito do cidadão a obter reparação pelos danos sofridos em decorrência de uma prestação jurisdicional equivocada.
O entendimento jurisprudencial encontra relevantíssimo julgamento no ano de 2007 (Recurso Extraordinário 505.393-8), em que o notável Ministro Sepúlveda Pertence – já nos últimos dias antes de sua aposentadoria – faz história no ordenamento jurídico brasileiro com seu judicioso voto na Primeira Turma do Pretório Excelso.
O caso advinha da Universidade Federal Rural de Pernambuco. O magnífico Reitor, titular de respeitável currículo profissional e acadêmico, fora preso preventivamente, denunciado e sentenciado incurso no crime de peculato doloso. Posteriormente, o Tribunal de Contas da União eximiu o condenado de toda responsabilidade. Em sede de revisão criminal, o Reitor foi absolvido de todas as acusações.
Propôs, então, o ex-Reitor, ação ordinária de indenização por danos morais contra a União, decorrentes não apenas da condenação, desconstituída em revisão criminal, mas também da prisão preventiva, à qual submetido, e da declaração difamatória do agente do Ministério Público.
A sentença julgou improcedente a demanda, repelindo a responsabilidade da União. O Tribunal Federal, no entanto, deu provimento à apelação e julgou procedente a ação, arbitrando a indenização por danos morais em R$ 100.000,00 (cem mil reais). A União interpôs recurso extraordinário, distribuído ao Min. Sepúlveda Pertence, que o submeteu à Turma, formada pelos não menos eminentes Ministros Ricardo Lewandowski e Ministra Cármen Lúcia, sob o argumento de que o julgamento colegiado poderia diminuir a “pobreza de nossa jurisprudência a respeito”.
A lucidez do voto do Relator é uma verdadeira aula de Direito. Em estudos comparativos, demonstra como a responsabilidade estatal vem sendo tratada em países como a França e a Itália desde o século XIX, passando pelas reformas e codificações posteriores e trazendo à lume a influência da própria codificação do ordenamento jurídico brasileiro até o advento da Constituição da República de 1988.
Destaca-se, do voto, a seguinte passagem em que argumenta pela responsabilidade civil objetiva do Estado em decorrência de atos jurisdicionais:
“Creio, porém, ser hoje opinião consensual da doutrina tratar-se de responsabilidade civil objetiva. Assim já me parecia evidente na disciplina do art. 630 do Código de Processo Penal. Agora sua constitucionalização no art. 5º, LXXV, obviamente, não veio para criar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, do art. 37, § 6º da Lei Fundamental: a regra constitucional nova veio apenas, a partir do entendimento consolidado de que a regra é a da irresponsabilidade civil do Estado por atos de jurisdição, estabelecer que, naqueles casos, a indenização constituiria garantia individual, e, manifestamente, não submeteu à exigência de dolo ou culpa do magistrado.”
A notável Ministra Cármen Lúcia, uma jurista à frente de seu tempo, proclamou:
“– Senhor Presidente, seguramente, vou seguir a tese de Vossa Excelência (...) eu tenho uma monografia sobre responsabilidade em razão de atos judiciais. (...) Senhor Presidente, eu sigo Vossa Excelência. Queria apenas deixar registrado, por não ser um voto tão simples, e, também, o meu interesse sobre a matéria – já trabalhei com ela, sempre fui uma perdedora nessa matéria.”
A monografia a que se refere a Ministra Cármen Lúcia é, possivelmente, Observações sobre responsabilidade patrimonial do Estado2, em que faz uma ardorosa – e ao mesmo tempo lúcida – defesa da tese advogada pelo Ministro Relator:
“Os espaços cunhados para dar refúgio e inoperância ao regime da responsabilidade estatal, como os dos atos legislativos e, em especial, dos atos judiciais, traçam infelizes representações de argumentos falidos dos séculos em que o autoritarismo era a regra, sobranceria arbitrária o valor e os direitos dos particulares meras conveniências dos poderosos. É um embaraço à dinâmica da democracia e ao acatamento dos seus princípios a permanência de tais argumentos, que não resistem a qualquer impugnação jurídica mais séria do que a simples continuidade de privilégios acima da garantia de controle das atividades estatais e da eficácia dos direitos dos cidadãos. (...) Seja, pois, o ato estatal de natureza administrativa, legislativa ou jurisdicional, é certo que a responsabilidade terá lugar quando dele se originar dano a alguém.”
Restou vencido neste julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski com as palavras finais de que, por já haver maioria de votos, posteriormente se debruçaria mais detidamente sobre o assunto:
“Dessa forma, Senhor Presidente, eu, ad cautelam, e com todo respeito pela verdadeira aula que Vossa Excelência ministrou hoje -, como já há uma maioria formada, ousaria não me comprometer com essa tese, desde logo, mas a estudarei devidamente, a partir das reflexões de Vossa Excelência, ficando vencido apenas para que não se invoque futuramente a minha adesão incondicional a essa tese que acho respeitável.”
A decisão da 1ª Turma influenciou outros membros da Suprema Corte e, desde então, o eminente Ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, vem assim decidindo os processos de sua relatoria no que tange à responsabilidade objetiva do Estado (RE 481.110-AgR):
“Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes. O dever de indenizar, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil objetiva do Poder Público, supõe, dentre outros elementos (RTJ 163/1107-1109, v.g.), a comprovada existência do nexo de causalidade material entre o comportamento do agente e o eventus damni, sem o que se torna inviável, no plano jurídico, o reconhecimento da obrigação de recompor o prejuízo sofrido pelo ofendido.” (RE 481.110-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6-2-2007, Segunda Turma, DJ de 9-3-2007.) No mesmo sentido: AI 299.125, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 5-10-2009, DJE de 20-10-2009; Vide: ARE 663.647-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 14-2-2012, Primeira Turma, DJE de 6-3-2012.
Não só o entendimento de juristas vanguardistas dos Tribunais Superiores do País, mas também a doutrina jurídica brasileira vem, aos poucos e timidamente, se posicionando no sentido de admitir a responsabilidade do Estado decorrente de atos judiciais, sempre em caráter de excepcionalidade, como visto nos julgamentos acima.
Em suma, o que temos, in casu, é que a conduta praticada pelo Estado desde a fase inquisitorial (investigação, reconhecimento, decretação de prisão), passando pela fase processual de primeira instância (condenação e cumprimento de pena) e segunda instância (fase recursal), causou, indubitavelmente, a lesão suportada pelo requerente. O nexo de causalidade resta sobejamente comprovado pelos documentos acostados aos autos, bem como pela própria sentença da revisão criminal.
Destarte, do meu ponto de perspectiva, ainda que os atos jurisdicionais não tenham sido praticados com dolo ou fraude, não há como isentar o Estado da responsabilidade e do dever de indenizar o autor da presente demanda, pois a conduta estatal não só o privou de sua liberdade, tirando-lhe do seio da sociedade e encarcerando-o junto à centenas de condenados pelos mais variados crimes, como também retirou-lhe da convivência do lar, usurpou-lhe a oportunidade de acompanhar o crescimento de suas filhas, destruiu a possibilidade de ter um casamento bem sucedido e, por fim, ensejou um verdadeiro atentado contra a dignidade humana.
DOS DANOS MORAIS
Inicialmente, é necessário conceituar este instituto dentro da ótica vislumbrada pelo legislador ordinário e constituinte originário que o alçou à condição de cláusula pétrea na categoria dos direitos individuais, especialmente no que tange ao presente caso.
Hodiernamente, não se discute mais da impossibilidade de indenização por danos morais, consagrada que está na Carta Magna de 1988, que protege como invioláveis "a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (Art. 5º, X).
Aguiar Dias, em sua célebre obra Responsabilidade Civil, vol. 2, nº 226, enfatiza:
"o dano moral deve ser compreendido em relação ao seu conteúdo, que não é o dinheiro nem a coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o espanto, a emoção, a vergonha, a injúria física ou moral, em geral uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa, atribuída à palavra dor o mais largo significado”.
Assim, o dano moral deve atender o caráter emocional ocasionado pela dor sofrida, levando-se em consideração, por óbvio, a condição do réu de arcar com o valor a ser indenizado, bem como se o valor fixado seria o suficiente para a vítima.
O dano, na esfera moral, com a interpretação subjetiva que recebe, prescinde de prova, porque é extra-patrimonial e não se confunde com dano material, embora possa com ele coexistir.
O jurista Carlos Roberto Gonçalves define, trazendo conceitos de Enneccerus sobre o dano como sendo "toda desvantagem que experimentamos em nossos bens jurídicos (patrimônio, corpo, vida, saúde, honra, crédito, bem-estar, capacidade de aquisição, etc.)” E mais ainda pontifica, trazendo lição de Pontes de Miranda: "dano não-patrimonial é o que atingindo o devedor como ser humano, não lhe atinge o patrimônio" (Responsabilidade Civil. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 391).
No entanto, para que se possa falar em dano moral, é preciso que a pessoa seja atingida em sua honra, sua reputação, sua personalidade, seu sentimento de dignidade, passe por dor, humilhação, constrangimentos, tenha os seus sentimentos violados, conforme alhures mencionado.
O grande problema sobre o tema não diz respeito a sua conceituação, mas sim a sua quantificação. Não sendo um mero aborrecimento, havendo a lesão a direitos da personalidade, há dano moral. Mas como quantificá-lo?
Se por um lado é necessário transformar as perdas e/ou lesões sofridas pela vítima em valores monetários, por outro, cabe ao magistrado a prudência de não arbitrar uma indenização que cause enriquecimento ilícito da parte.
Uma tentativa de solucionar a questão foi proposta pelo estudioso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no julgamento do Recurso Especial 959.780/ES. A tese é fundamentada no método bifásico de arbitramento, que analisa dois critérios principais: a) o bem jurídico lesado e; b) as circunstâncias relatadas no processo.
A propósito, cita-se a ementa do julgamento, relevante contribuição do culto Ministro Sanseverino:
“RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. CRITÉRIOS DE ARBITRAMENTO EQUITATIVO PELO JUIZ. MÉTODO BIFÁSICO. VALORIZAÇÃO DO INTERESSE JURÍDICO LESADO E DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO.
1. Discussão restrita à quantificação da indenização por dano moral sofrido pelo esposo da vítima falecida em acidente de trânsito, que foi arbitrado pelo tribunal de origem em dez mil reais.
2. Dissídio jurisprudencial caracterizado com os precedentes das duas turmas integrantes da Segunda Secção do STJ.
3. Elevação do valor da indenização por dano moral na linha dos precedentes desta Corte, considerando as duas etapas que devem ser percorridas para esse arbitramento.
4. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em grupo de precedentes jurisprudenciais que apreciaram casos semelhantes.
5. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias do caso, para fixação definitiva do valor da indenização, atendendo a determinação legal de arbitramento equitativo pelo juiz.
6. Aplicação analógica do enunciado normativo do parágrafo único do art. 953 do CC/2002.
7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.” (REsp 959780/ES, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2011, DJe 06/05/2011)
O objetivo do método é estabelecer um ponto de equilíbrio entre o interesse jurídico lesado e as peculiaridades do caso, de forma que o arbitramento seja equitativo. Segundo as palavras do próprio Ministro no célebre voto do julgamento, assim deve ser arbitrado o quantum indenizatório pelo método bifásico:
“Na primeira fase, arbitra-se o valor básico ou inicial da indenização, considerando-se o interesse jurídico lesado, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (grupo de casos). Assegura-se, com isso, uma exigência da justiça comutativa que é uma razoável igualdade de tratamento para casos semelhantes, assim como que situações distintas sejam tratadas desigualmente na medida em que se diferenciam.
Na segunda fase, procede-se à fixação definitiva da indenização, ajustando-se o seu montante às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias. Partindo-se, assim, da indenização básica, eleva-se ou reduz-se esse valor de acordo com as circunstâncias particulares do caso (gravidade do fato em si, culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes) até se alcançar o montante definitivo. Procede-se, assim, a um arbitramento efetivamente equitativo, que respeita as peculiaridades do caso.
Chega-se, com isso, a um ponto de equilíbrio em que as vantagens dos dois critérios estarão presentes. De um lado, será alcançada uma razoável correspondência entre o valor da indenização e o interesse jurídico lesado, enquanto, de outro lado, obter-se-á um montante que corresponda às peculiaridades do caso com um arbitramento equitativo e a devida fundamentação pela decisão judicial.”
Desse modo, é preciso enfrentar as circunstâncias do caso concreto. O que se vê, na presente demanda, é que Paulo foi preso e sentenciado por um crime que, definitivamente, não cometeu (f. 59/76). No momento em que fora preso, o crime ganhou repercussão da mídia, mas Pedro Meyer, ah! Pedro Meyer – o verdadeiro autor dos bárbaros crimes sexuais contra as crianças da Capital Mineira – não é dotado das virtudes de um Jean Valjean, personagem de Os Miseráveis, épica história de Victor Hugo (1802–1885), publicada em 1862.
Jean Valjean, sabendo que um inocente de nome Champmathieu fora preso em seu lugar, invade a audiência em que haveria de ser referendado o equivocado reconhecimento do pobre homem – que por sua vez sempre negara todas as acusações (quanta semelhança!), se apresenta e informa ser a pessoa que a Justiça realmente procurava. Ao entrar no recinto assim falava o Presidente do Tribunal:
“– O senhor [o acusado] está numa situação em que é preciso refletir. As mais graves suposições pesam sobre sua cabeça, podendo trazer-lhe gravíssimas consequências. (p. 402)
[Neste momento é interpelado pelo Advogado-Geral, que seria o Promotor de Justiça no ordenamento jurídico brasileiro]
– Acusado, preste atenção. O senhor não responde coisa alguma ao que lhe perguntam. Seu embaraço o condena. É evidente que o seu nome não é Champmathieu; é evidente que o senhor é o grilheta Jean Valjean, escondido a princípio sob o nome de Jean Mathieu, sobrenome de sua mãe. (...) está fora de dúvida que o senhor roubou, escalando os muros da chácara Pierron. Tudo isso será tomado em conta pelos senhores jurados. (p. 403)
(...)
– Sr. Presidente, diante das negações confusas mas extremamente hábeis do acusado, que se esforça muito bem para passar por idiota, mas que não o conseguirá, já o prevenimos, pedimos que V. Exa. e toda a corte se dignem a chamar de novo a este recinto os condenados Brevet, Cochepaille e Chenildieu e o Inspetor Javert, para os interrogar pela última vez sobre a identidade do acusado como o grilheta Jean Valjean (p. 404)
[O depoimento do Inspetor Javert]
– Não tenho necessidade de suposições morais nem de provas materiais para desmentir as negativas do acusado. Reconheço-o perfeitamente. Esse homem não se chama Champmathieu; é um antigo condenado às galés, muito perigoso e temível, chamado Jean Valjean. (...) Torno a repetir que o reconheço perfeitamente. (p. 405)
[O condenado Brevet]
– Sim, Sr. Presidente. Fui eu que o reconheci primeiro e continuo a afirmar: esse homem é Jean Valjean. (...) Não tenho dúvida alguma a esse respeito. (p. 406)
[O condenado Chenildieu]
– Ora! Se o reconheço! Estivemos por cinco anos ligados à mesma corrente. (p. 407)
[O condenado Cochepaille]
– É Jean Valjean. É o mesmo a quem chamavam de Jean-le-Cric, tal era a sua força. (p. 407)
[Valjean interrompe o julgamento]
– Senhores jurados, mandem soltar o réu. Sr. Presidente, mande-me prender. O homem que os senhores procuram não é este, sou eu. Eu sou Jean Valjean! (p. 409)
(...)
Era evidente que quem ali estava era Jean Valjean. Era claro. O aparecimento daquele homem fora suficiente para desvendar todo o enigma dos momentos anteriores. Sem que fosse necessária nenhuma explicação posterior, toda aquela multidão compreendeu de repente, e com um único olhar, a simples e magnífica história de um homem que se entregava para que outro não fosse condenado em seu lugar. Os pormenores, as hesitações, as pequenas resistências possíveis perderam-se nesse imenso e brilhante acontecimento. (p. 413)” (HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Cosac Naify, 2012.)
Aqui no Brasil, duzentos anos depois, a história fictícia do escritor francês ganha tristes contornos de realidade. “Paulo Porteiro”, execrado pela mídia, condenado pelo Estado, torturado por outros presos (f. 139), abandonado pela esposa, apartado violentamente do convívio com as filhas já não possui a decantada “dignidade da pessoa humana”, fundamento da República (art. 1º, CF/88).
Na prisão, inconformado com tamanha injustiça, encarcerado em prisão absolutamente insalubre, superlotada e – é possível imaginar pela natureza do crime imputado injustamente – violentado por outros presos (f. 136), tenta suicídio usando uma lâmina de barbeador (f. 123)!
Sua presença nas prisões por onde passou sempre causou desconforto nos demais presidiários. Agressões e ameaças eram comuns (f. 130, 132, 136, 141), sendo que, em uma das ocasiões, fora encontrado por agentes penitenciários num buraco, no pátio da Penitenciária José Maria Alkimin (f. 136), sendo conduzido imediatamente para o Hospital de Pronto Socorro de Venda Nova extremamente machucado (f. 140). Não, decididamente, Paulo Antônio da Silva não é um “aventureiro em busca de enriquecimento sem causa”, como quer fazer crer a defesa do réu.
O que se buscou, uma vez mais, foi “dar uma resposta” para a sociedade?! Alguém tinha de ser preso! Esse alguém, infelizmente, foi “Paulo Porteiro”. Porém, a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.
A aludida “resposta à sociedade” não é novidade na história da humanidade, tampouco trata-se de uma exclusividade brasileira. Basta lembrar dos fatos ocorridos em 05 de outubro de 1974 na Inglaterra.
Um atentado a bomba no Guildford Pub, nos arredores de Londres, desencadeia uma verdadeira “caça às bruxas” no Reino Unido, ensejando a criação de uma esdrúxula Lei Antiterrorista (Prevention of Terrorism Act) como tentativa de coibir as atuações do IRA, grupo paramilitar irlandês.
Quatro jovens inocentes são presos: Paul Hill, Paddy Armstrong, Carole Richardson e Gerry Colon, este último autor do livro Proved Innocent, posteriormente levado ao cinema sob o título Em Nome do Pai.
Condenados à prisão perpétua, somente quinze anos mais tarde foi possível provar a inocência dos Guildford Four (como ficaram conhecidos), graças à sagacidade da advogada Gareth Peirce. Os condenados foram indenizados em quinhentas mil libras esterlinas – algo em torno de dois milhões de reais.
No Brasil, casos de indenização por danos morais em decorrência de prisões ilegais também são comuns.
No Estado de Goiás, a 4ª Câmara Civil estabeleceu o pagamento de indenização no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a um cidadão preso ilegalmente que ficou “de um dia para o outro na cadeia”, acusado de roubo:
“"APELACAO CIVEL. INDENIZACAO. PRISAO ILEGAL. DANO MORAL. 1 - O ESTADO ESTA OBRIGADO A INDENIZAR O PARTICULAR QUANDO, POR ATUACAO DOS SEUS AGENTES, PRATICA CONTRA O MESMO, PRISAO ILEGAL. 2 - A INDENIZACAO POR DANOS MORAIS E DEVIDA PELO SOFRIMENTO VIVENCIADO PELO CIDADAO, QUE TEVE A SUA HONRA ATINGIDA PUBLICAMENTE E O SEU DIREITO DE LOCOMOCAO VIOLADO. 3 - A RESPONSABILIDADE PUBLICA POR PRISAO ILEGAL, NO DIREITO BRASILEIRO, ESTA FUNDAMENTADA NA EXPRESSAO CONTIDA NO ARTIGO 5º, LXXV, DA CF. APELACAO CONHECIDA E IMPROVIDA." (TJGO, APELACAO CIVEL 83505-9/188, Rel. DES. CARLOS ESCHER, 4A CAMARA CIVEL, julgado em 19/05/2005, DJe 14537 de 21/06/2005)
Já o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou o Estado ao pagamento de R$ 28.800,00 (vinte e oito mil e oitocentos reais) pela prisão ilegal de um motorista acusado de falsificar a carteira nacional de habilitação. A prisão naquele caso, durou vinte e quatro horas:
“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL, RECURSO ADESIVO E REEXAME NECESSÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRISÃO ILEGAL. DANOS MORAIS. CONFIGURAÇÃO. QUANTIFICAÇÃO. VERBA HONORÁRIA SUCUMBENCIAL. COMPENSAÇÃO. Configurada a falha do serviço público, pela atuação incauta dos policiais que lavraram o auto de prisão em flagrante sem diligenciar minimante a fim de saber se era válida a Carteira de Nacional de Habilitação do autor, reconhecido resta o dever de indenizar. Até porque não resistira o autor quanto à prisão e pedira que fosse contatado com a delegacia de origem do documento para esclarecer sobre sua validade, o que não foi feito. Assim, é inarredável o dever de indenizar do Estado, porquanto ordenada e cumprida a prisão de pessoa que não cometera qualquer infração penal e que sequer dispunha de antecedentes criminais. A responsabilidade aqui é objetiva e o dano moral decorrente do recolhimento ao presídio por 24 horas é assente. A quantificação, considerando a gravidade do ato, suas nefastas repercussões, bem como a situação econômica de ambas as partes, está bem posta e desmerece minoração. Tendo em vista a ausência de dilação probatória, vai acolhido o apelo no ponto em que pugna pela redução do percentual relativo aos honorários da sucumbência, os quais vão arbitrados em 10% sobre o valor da condenação. Apelo adesivo que visava à majoração da verba indenitária, improvido. Viável a pretensão quanto à compensação de honorários, ante o entendimento reiterado do 3º Grupo Cível e o ter da Súmula 306 do STJ. APELO DO RÉU PROVIDO EM PARTE. APELO ADESIVO IMPROVIDO. SENTENÇA, ADEMAIS, CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO.” (Apelação e Reexame Necessário Nº 70009150376, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Vinícius Amaro da Silveira, Julgado em 11/11/2004)
Mas a situação que mais se aproxima a dos presentes autos ocorreu no ano de 2012. O TRF da 4ª Região concedeu indenização por danos morais e materiais a um homem que ficou preso durante cinco anos, condenado por latrocínio. A revisão criminal julgou procedente o pedido do autor, ensejando, posteriormente, ajuizamento de ação de indenização cujo quantum foi fixado em R$ 1.000.000,00 (hum milhão de reais):
“ERRO JUDICIÁRIO. CONDENAÇÃO CRIMINAL. REVISÃO. ABSOLVIÇÃO. DANOS MORAIS.
Condenação criminal com cumprimento em regime prisional fechado, posteriormente comprovado, em revisão criminal, a inocência, configura erro judicial passível de indenização. É objetiva a responsabilidade civil do Estado, independente da atuação do magistrado, que é subjetiva. Dano materiais pelo tempo que deixou de ganhar, a ser calculado em liquidação de sentença, considerando o labor do indivíduo. Danos morais devidos, fixados em um milhão de reais. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 2006.72.12.000660-9/SC RELATOR: Des. Federal FERNANDO QUADROS DA SILVA - REL. ACÓRDÃO: Des. Federal MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA. Dj 14/03/2012)”
A relatora do acórdão, Des. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, assim fundamentou seu voto:
"Fico imaginando não só os danos pessoais, mas os danos físicos de alguém encarcerado no regime de reclusão nos presídios que nós conhecemos e sabemos dos problemas, das mazelas do nosso sistema prisional, também os danos psíquicos a que esse cidadão brasileiro se submeteu (…) Um milhão de reais para a União em face do que ela recolhe de tributos não é nada, é uma gota d’água, é um grão de areia, mas para essa pessoa reiniciar de onde parou é importante. O autor carregará o estigma. Essa marca na psique do autor é o que me preocupa e, para formarmos bons cidadãos, temos de ser um bom Estado"
O Des. Thompson Flores, acompanhou o voto da relatora e assim expôs seu ponto de visão quanto ao caso em particular:
“O caso realmente é doloroso. A Des. Maria Lúcia ponderou muito bem: se fôssemos quantificar isso materialmente, iríamos ao infinito. A dor de uma pessoa, principalmente na realidade carcerária que conhecemos... Recordei-me agora há pouco, ouvindo o eminente advogado, ouvindo as discussões que tivemos, de Dostoiévski, de quem gosto muito. Uma de suas obras é Recordações da Casa dos Mortos, em que um cidadão, que foi injustamente, por motivos políticos, encarcerado na Sibéria, descreve em um diário a tortura daquilo. Acho que podemos comparar nossos presídios, lamentavelmente, a uma Sibéria. A literatura do erro jurídico é farta: temos o caso dos irmãos Naves, nos anos 50; temos o clássico caso imortalizado por Anatole France, caso Dreyfus, na virada do Século XIX para o XX. Sinto-me muito confortável porque já tenho votos e artigo publicado no sentido de que admito responsabilidade civil do Estado pelo ato jurisdicional (…) o fato é que um inocente foi martirizado por assim dizer (…) o autor merecia mais para que tivesse uma reparação moral, porque a material, cinco anos e oito meses, essa ninguém devolve; (…) a Des. Maria Lúcia, neste caso, parece-me, dentro do que podemos fazer, quantificou da forma mais adequada ao caso, até para ter um efeito pedagógico. Houve um mal funcionamento da Justiça, mas não me parece ter havido culpa grave ou dolo por parte do Juiz, isso é evidente que não houve, mas, pelo dito da tribuna, talvez até pela comoção que o fato gerou - a história está cheia de julgamentos por antecipação -, isso teve um efeito.”
Caso mais grave – se é que é possível mensurar gravidade maior que a injusta perda da própria liberdade –, porém semelhante ao dos autos, se deu no Estado de Pernambuco. Um cidadão foi mantido preso equivocadamente durante nada menos que treze anos! Ajuizada ação de indenização, o Colendo Superior Tribunal de Justiça fixou o valor em R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais):
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO.
MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE POR APROXIMADAMENTE TREZE ANOS (DE 27/09/1985 A 25/08/1998) À MINGUA DE CONDENAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFICASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
1. Ação de indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de indenização por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do autor em cárcere por quase 13 (treze) anos ininterruptos, de 27/09/1985 a 25/08/1998, em cadeia do Sistema Penitenciário Estadual, onde contraiu doença pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos dois olhos durante uma rebelião.
2. A Constituição da República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária.
3. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial.
4. Direitos fundamentais emergentes desse comando maior erigido à categoria de princípio e de norma superior estão enunciados no art. 5.º da Carta Magna, e dentre outros, os que interessam o caso sub judice destacam-se: XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
(...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
(...) LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
(...) LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
(...) LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
5. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase 13 (treze) anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso, sendo certo que, em razão do encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças, como a tuberculose, e a cegueira.
6. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF/1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37/STJ) 7. Nada obstante, o Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplariedade e da solidariedade, considerando os consectários econômicos, as potencialidades da vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma desproporcional.
8. In casu, foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis mil reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta e quatro mil reais) de danos morais.
9. Fixada a gravidade do fato, a indenização imaterial revela-se justa, tanto mais que o processo revela o mais grave atentado à dignidade humana, revelado através da via judicial.
10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma "morte em vida", que se caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza humana?
11. Anote-se, ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que "a exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que 'todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos'. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual". (REsp 612.108/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 03.11.2004) 12. Recurso Especial desprovido. (REsp 802435/PE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/10/2006, DJ 30/10/2006)
Caracterizado o dano moral, passo, assim, ao arbitramento equitativo da indenização, atendendo as circunstâncias do caso.
Na primeira fase, o valor básico ou inicial da indenização, considerando o interesse jurídico lesado, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria acima aludidos, deve ser fixado um montante equivalente a R$ 1.500.000,00 (hum milhão e quinhentos mil reais) na data de hoje, que é a média do arbitramento feito pelos dois julgamentos supracitados e que mais se assemelham ao caso concreto.
Na segunda fase, para a fixação definitiva da indenização, ajustando-se às circunstâncias particulares do caso, deve-se considerar, em primeiro lugar, a gravidade do fato em si, pois a vítima foi acusada de crime contra a liberdade sexual, o que causa maior repulsa no meio carcerário e, consequentemente, uma realidade ainda mais violenta durante o período em que passou na prisão (vide laudos médicos que relatam as agressões cometidas pelos demais presidiários contra o autor).
A situação sub examine, demonstra que não há nada nos autos que abrande a conduta lesiva do Estado. Tem-se, ainda, que a situação somente foi sanada, após inúmeras intervenções dos advogados da parte autora, que, após o esgotamento de todas as vias recursais, lograram êxito ao requererem providências junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em sede de revisão criminal.
Evidentemente que, sem esquecer a intensidade da agressão moral relatada na inicial e amplamente demonstrada nos documentos acostados aos autos, o valor indenizatório deverá ser estabelecido em termos razoáveis, a fim de que se afaste, como já dito, a possibilidade de enriquecimento ilícito.
Destarte, para os cinco anos, sete meses e dezenove dias em que o autor esteve encarcerado injustamente em regime fechado, bem como pelo período em que cumpriu pena em regime domiciliar e, posteriormente, livramento condicional sujeito a várias restrições de direito, penso que a fixação do valor indenizatório por danos morais no montante de 2.000.000,00 (dois milhões de reais) seja razoável.
Assim, a meu ver, o valor aferido para a indenização deve ser bastante para coibir futuras injustiças por parte do Estado, bem como dirimir – eis que jamais terá o condão de suprimir – a irreparável supressão da liberdade3 de alguém inocente.
DOS DANOS MATERIAIS
A possibilidade de cumulação pedidos de indenização por danos morais e materiais é prevista na Súmula 37 do STJ, ipsis litteris:
“São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.”
Entretanto, em relação ao quantum indenizatório do prejuízo patrimonial do autor causado pela conduta do Estado, o cálculo se torna mais simples do que aquele que se relaciona aos danos de cunho moral, como já longamente debatido.
Em se tratando de prisão indevida e no que diz respeito ao dano patrimonial, deverá ser avaliado o prejuízo efetivo sentido pelo lesado. Da farta documentação trazida aos autos, vê-se que o autor trabalhava como porteiro e os danos materiais decorrem da perda de sua remuneração devido a impossibilidade de exercício de sua profissão, hipótese em que a justa avaliação deve ser efetuada computando-se o salário ou rendimentos que o ofendido deixou de perceber injustamente (incluindo todos os consectários legais) por conta da privação ilegal de sua liberdade, na forma como disposto no art. 954 do Código Civil.
Para tanto, os valores devidos deverão ser apurados em liquidação de sentença.
III – CONCLUSÃO
ISSO POSTO, nos termos da fundamentação e por tudo mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE os pedidos iniciais formulados por PAULO ANTÔNIO DA SILVA em face do ESTADO DE MINAS GERAIS.
Via de consequência, condeno o réu ao pagamento de 2.000.000,00 (dois milhões de reais) a título de indenização por danos morais.
Por orientação da Súmula 362 STJ, o valor deverá ser corrigido monetariamente a partir da data do arbitramento da indenização e os juros deverão fluir a partir da data do evento danoso, conforme inteligência da Súmula 54 STJ.
Outrossim, condeno o réu ao pagamento de indenização por danos materiais, em valor a ser apurado em liquidação de sentença multiplicando-se o valor atualizado que receberia mensalmente se estivesse trabalhando, incluindo todos os consectários legais, durante todo o período em que esteve preso em regime fechado.
Quanto à indenização por danos materiais, os valores deverão, a partir de 30.06.2009, ser corrigidos monetariamente pelo IPCA, desde a data em que são devidos, e acrescidos de juros de mora, a partir da citação, equivalentes aos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicáveis à caderneta de poupança – consoante recentes jurisprudências do Col. STJ e Eg. TJMG. Os valores devidos anteriormente àquela data deverão ser atualizados nos termos da antiga redação do art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997.
Finalmente, condeno o réu ao pagamento das despesas processuais, bem como dos honorários advocatícios ao Dr. Procurador do autor, os quais arbitro em R$ 10.000,00 (dez mil reais), considerando que o trabalho desenvolvido não demandou grande debate judicial, de acordo com o § 4º do art. 20 do Código de Processo Civil. Isento o réu de custas, de acordo com o art. 10, inciso I, da Lei n.º 14.939/03.
Decisão sujeita ao reexame necessário.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Belo Horizonte, 22 de julho de 2014.
Carlos Donizetti Ferreira da Silva
Juiz de Direito
7ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias
1 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. 8ª ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. págs.1204-1205.
2 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Observações sobre a responsabilidade patrimonial do Estado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 28, n.º 111, p. 79-122, jul./set. 1991.
3“Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta; que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda..." (Cecília Meireles, em “Romanceiro da Inconfidência”, publicado em 1953).