Numeração única: 1184610-94.2011

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

 

 

Vistos, etc.

 

 

 

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ajuizou ação CIVIL PÚBLICA em face do MARIA DE SOUZA SA, ORGANIZAÇÕES GAM LTDA., PENSÃO MINEIRA LTDA., HOTEL PRIVÊ LTDA., HOTEL LÍRIO LTDA., REQUINTE HOTEL LTDA., STYLUS HOTEL LTDA., JOSÉ GONÇALVES e o MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE sob alegação de que ficou apurado nos autos do Inquérito Civil 0024 10 002164-1, em vistoria realizada pela Secretaria de Administração Regional Municipal Centro-Sul nos estabelecimentos requeridos constatou-se que exerciam atividade ilícita, funcionando como prostíbulos. Inobstante isso, o Município de Belo Horizonte estaria se limitando a notificar formalmente os estabelecimentos, mantendo-se inerte na solução do problema apresentado, sem se valer do poder de polícia para fazer cessar as violações ao ordenamento jurídico. Afirma que também foi encaminhado expediente à Promotoria de Justiça Criminal para ciência e adoção de providências cabíveis. Invoca o art. 225, “caput”, da Constituição Federal acerca do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, o que é repetido pela Constituição do Estado de Minas Gerais e pela Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte. Invoca a competência concorrente para a preservação do meio ambiente, transcreve dispositivos legais do Código de Posturas do Município de Belo Horizonte (Lei Municipal nº 8.616/2003), invoca o poder de autoridade municipal e recorre à doutrina sobre o tema. Pede liminar para que os requeridos cessem imediatamente qualquer atividade no local, sob pena de multa diária de R$20.000,00, impondo ao Município de Belo Horizonte a fiscalização dos estabelecimentos, inclusive com a interdição. Pede o processamento até final procedência, com a imposição de obrigação de fazer em se abster de manter qualquer atividade no local sem autorização do Município de Belo Horizonte, impondo a este a obrigação de não fazer para negar os alvarás de localização e funcionamento, além de fiscalizar a legalidade de funcionamento dos estabelecimentos. Pede provas, atribui à causa o valor de R$1.000,00 e junta documentos.

O inquérito civil consistente em um volume está apensado aos autos principais.

A liminar foi indeferida (fls. 17-18) e, realizadas as citações, vieram contestações.

Organização Gam Ltda. juntou procuração (fls. 39-40). O MP agravou do indeferimento da liminar (fls. 43-44).

PENSÃO MINEIRA LTDA., HOTEL PRIVÊ LTDA., HOTEL LIRIO LTDA. e REQUINTE HOTEL LTDA., STYLUS HOTEL LTDA. apresentaram contestações e documentos separados, contudo apresentados pelo mesmo advogado (fls. 45-83, 84-148, 149-192, 195-228, 229-273 ), invocando, de início, ofensa ao princípio do contraditório e da ampla defesa, o que teria sido suprimido no procedimento administrativo. Alegam em preliminar a ilegitimidade passiva, afirmando que o Município é o competente para conceder a licença de funcionamento e que possui licença municipal. Pedem a sua exclusão da lide. No mérito, aduzem que têm como objetivo social a prestação de serviços de hospedagem e todos os seus ganhos são provenientes do pagamento das diárias quando da cessão dos quartos, tanto para homens como para mulheres, tratando-se de exercício regular nos estritos termos do alvará. Afirmam que nunca funcionaram como prostíbulo e que alugam os quartos para quem se interessar, cobrando diária média de R$110,00, sem possuírem política de descontos. Afirmam que os hotéis da região da rua Guaicurus constituíram uma associação denominada Associação dos Amigos da Rua Guaicurus – AARG, sociedade sem fins lucrativos que objetiva a revitalização, a segurança, tombamento histórico e imaterial da região, limpeza das ruas, saúde dos empregados e usuários dos hotéis. No início de 2011 a associação com apoio de parlamentar estadual visitou o Comandante da Polícia Militar, a quem apresentou seus projetos, especialmente sobre a segurança da região, inclusive com participação no Conselho de Segurança da Regional Centro-Sul e fornecimento de equipamentos para atuação da polícia militar. Aduzem que a região constitui patrimônio histórico, inclusive retratado pelo escritor Roberto Drummond no livro “Hilda Furacão”, e que no início do século XX a rua Guaicurus era o centro da zona boêmia de Belo Horizonte, reportando-se a diversas autoridades frequentadoras do local. Invocam a função social do patrimônio histórico, dizendo ainda que mantêm 09 empregados registrados em seu estabelecimento. Pedem o acolhimento da preliminar, anulação do Procedimento Administrativo pela falta de contraditório e improcedência da pretensão inicial.

Foi formulado pedido de informações ao agravo contra o indeferimento da liminar, restando também negada a liminar (fls. 278-280). A decisão agravada foi mantida e prestadas informações (fls. 281-282).

JOSÉ GONÇALVES SAMARONE contestou e juntou documentos (fls. 285-318), também alegando ofensa ao contraditório e à ampla defesa na fase administrativa, arguindo ilegitimidade passiva. No mérito, alega regularidade da sua atividade, repetindo os argumentos das contestantes Pensão Mineira Ltda., Hotel Privê Ltda., Hotel Lirio Ltda. e Requinte Hotel Ltda., Stylus Hotel Ltda., pedindo a improcedência da pretensão.

ORGANIZAÇÕES GAM LTDA. contestou e juntou documentos (fls. 319-378), alegando em preliminar a ilegitimidade ativa do Ministério Público e a falta de interesse de agir, argumentando que o exercício de prostituição não atingiria o meio ambiente. No mérito, afirma que não há prova de crime praticado no local, inexistindo correspondência fático legal. Afirma que se trata de atividade legal, aduzindo que as diversas propagandas de motéis e boates não são fiscalizadas pelo Ministério Público. Aduz que funciona legalmente no local há 27 anos. Pede a improcedência da pretensão.

MARIA DE SOUZA S/A contestou e juntou documentos (fls. 485-520), alegando que exerce atividade de motel e bar desde o ano de 1999 e que sempre atendeu às normas municipais, observando o que consta do alvará. Colaciona doutrina para demonstrar a inexistência de crime de exploração da prostituição, aduzindo que na cidade há diversas estabelecimentos com a mesma natureza da contestante. Pede, enfim, a improcedência da pretensão.

O Ministério Público replicou (fls. 522-539), afirmando a legitimidade ativa para propor a ação civil pública, por força do art. 129, III, da CF e Lei 7.347/1985, porque lhe cabe a proteção do meio ambiente. Sustenta que tem interesse jurídico para agir, porque estão presentes os aspectos materiais. Também sustenta a legitimidade passiva dos requeridos. No mérito, afirma a regularidade do inquérito civil instaurado, inclusive com limitação ao contraditório, além do que não serve para exaurir a matéria. Reafirma que há ilicitude na atividade das requeridas, porque estão licenciadas para hotéis e que funcionam como casas de prostituição. Analisa a situação dos requeridos, pleiteando o reconhecimento da revelia do Município de Belo Horizonte.

Foram requeridas provas e juntados documentos (fls. 538-560). A prova pericial foi indeferida (fls. 561), designando-se audiência de conciliação, instrução e julgamento (fl. 561). Os requeridos agravaram contra a decisão que indeferiu a prova pericial (fl. 575). Os requeridos juntaram documentos (fls. 603-610), apresentando em seguida nova manifestação (fls. 618-622).

Em audiência (fls. 632-643) foram inquiridas 07 testemunhas e encerrada a instrução.

Em memorial (fls. 661-673), o Ministério Público impugnou mais uma vez as preliminares aduzidas, afirmando a legitimidade ativa e passiva. No mérito, reafirmou o direito a um meio ambiente saudável, reafirmando a ilicitude nas atividades das requeridas. Acentua que a atividade deve ficar limitada à licença do Município. Afirma que o Município de Belo Horizonte silencia quanto ao seu dever de interdição dos estabelecimentos e não renovar os alvarás, argumentando que a atividade exercida é ilícita, por isso não pode ser tolerada. Reitera seu pedido inicial.

Veio aos autos a decisão do agravo, negando a liminar pretendida pelo Ministério Público (fls. 676-689).

Em seu memorial (fls. 690-706), Pensão Mineira Ltda., Hotel Privê Ltda., Hotel Lirio Ltda .e Requinte Hotel Ltda., Stylus Hotel Ltda. e José Gonçalves Samarone reafirmaram o princípio da publicidade, da legalidade e ofensa ao contraditório e à ampla defesa, diante da falta de regular instauração de procedimento administrativo. Reafirmam a ilegitimidade passiva e, no mérito, sustentam a legalidade das suas atividades. Reportam-se aos hotéis de luxo e a prostituição, invocando o princípio da igualdade e do patrimônio histórico imaterial da região dos hotéis da rua Guaicurus, reconhecida como zona boêmia frequentada por autoridades. Aduzem que alugam quartos para qualquer pessoa. Reiteram as preliminares e, no mérito, pedem a improcedência da pretensão. Ao final ainda apresentaram manifestação marginal manuscrita.

Maria de Souza S/A apresentou memorial (fls.707-736), afirmando que exerce regular atividade licenciada como bar e motel. Afirma que sua atividade tem aceitação social, recorre à doutrina sobre os ilícitos penais invocados, inclusive quanto à definição de casa de prostituição, invocando doutrina e jurisprudência. Pede, ao final, a improcedência da pretensão.

O TJMG comunicou a desistência do agravo contra o indeferimento da prova pericial (fls. 737-740).

É o relatório.

Fundamento e decido.

Trata-se de ação CIVIL PÚBLICA proposta pelo Ministério Público em face de Maria de Souza S/A, Organizações Gam Ltda., Pensão Mineira Ltda., Hotel Privê Ltda., Hotel Lírio Ltda., Requinte Hotel Ltda., Stylus Hotel Ltda., José Gonçalves e o Município De Belo Horizonte.

1 Da ilegitimidade ativa

A legitimidade ativa para o Ministério Público propor inquérito civil e ação civil pública está amparado no art. 129, III, da CF e Lei 7.347/1985.

Rejeito a preliminar de ilegitimidade ativa.

2 Da ilegitimidade passiva

No que se refere à ilegitimidade passiva, deve ser acentuado que o Ministério Público está imputando aos requeridos a prática de conduta ilícita (prostituição).

De acordo com a teoria da asserção, as preliminares somente podem ser consideradas hábeis para extinguir o processo quando não houver qualquer admissibilidade de conhecimento do mérito. Isso não ocorre nestes autos.

A análise da ocorrência ou não de ilicitude é matéria que somente poderá ser apreciada com o mérito.

Rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva.

3 Da falta de interesse de agir

No que se refere à falta de interesse de agir, trata-se de questão que está ainda mais ligada ao mérito, não comportando apreciação em sede de liminar, porque está vinculada à existência ou não de ilegalidade.

Rejeito a preliminar de falta de interesse de agir.

4 Da ofensa ao contraditório e à ampla defesa no procedimento administrativo

A ofensa ao contraditório e à ampla defesa na fase administrativa, mesmo de inquérito civil, não interfere no resultado desta demanda. Embora se admita que a Constituição Federal exija, no art. 5º, LV, a formação do contraditório e da ampla defesa na fase administrativa, o inquérito civil tem o condão de apenas reunir elementos de prova para serem utilizados em juízo, já que o Ministério Público não tem competência para aplicar sanções. Como as provas colhidas unilateralmente no processo administrativo, para a sua validade, devem ser repetidas no processo judicial, inexiste prejuízo quanto ao resultado do processo.

Rejeito o vício de procedimento alegado na defesa.

5 Do mérito

De acordo com o fundamento de fato constante da inicial, os estabelecimentos requeridos estariam sendo utilizados para o exercício de atividade ilícita, funcionando como prostíbulos, e o Município de Belo Horizonte não estaria utilizando do seu poder/dever de polícia para cessarem as violações, limitando-se a fazer notificações inócuas.

Quanto ao fundamento de direito, o Ministério Público invoca a garantia constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Também invoca o art. 317 do Código de Posturas do Município de Belo Horizonte, dizendo que deve haver interdição de estabelecimento quando houver risco à saúde, quando se tratar de atividade poluente e, em havendo ofensa ao bem estar da comunidade, há o poder/dever da Administração de agir. Argumenta que tratando-se de atividade ilícita não é passível de regulamentação.

Sou forçado a admitir que tenho dificuldades de alcançar o raciocínio ministerial de que a prostituição dos hotéis/motéis estaria violando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida.

Espero que a demanda não tenha por objetivo higienizar o hipercentro de Belo Horizonte, sobretudo na regão tradicionalmente conhecida como “zona boêmia”, em razão da proximidade da “Copa do Mundo”, como meio de maquiar uma realidade histórica da Capital para mostrar ao mundo uma situação que não corresponde à realidade.

Embora os requeridos tentassem provar em audiência que os seus estabelecimentos não são utilizados para prostituição, isso, na verdade, é irrelevante.

Ocorre que tanto os hotéis como os motéis não podem negar o acesso aos clientes que ali pretendam se hospedar, sejam solteiros ou casados, prostitutas ou não.

Também, pago o preço da estada, os administradores dos estabelecimentos não podem negar a qualquer pessoa, prostituta ou não, receber na intimidade dos quartos/apartamentos os seus acompanhantes, sejam parceiros sexuais ou não.

A prostituição pode até sofrer repulsa social, sobretudo por aqueles inseridos numa dogmática religiosa mais fundamentalista, contudo ela não caracteriza ilícito civil e muito menos penal, porque somente a exploração ou obtenção de vantagem da prostituição é que caracteriza o crime.

No caso destes autos, os estabelecimentos requeridos são hotéis e motéis que funcionam no hipercentro de Belo Horizonte. Mesmo que o local esteja sendo utilizado por prostitutas que alugam quartos, isso não caracteriza o ilícito, pois não há prova de que, afora o preço da locação do apartamento/quarto – que é de acesso público –, os donos dos estabelecimentos estejam auferindo vantagens da prostituição.

Como a intimidade tem proteção constitucional, sequer existe a possibilidade de indagar aos frequentadores sobre as práticas realizadas a portas fechadas, uma vez que o sexo pago, que não vise favorecer terceiros, não constitui ilícito.

Aliás, pretender extinguir a prostituição no hipercentro dá uma impressão de conduta preconceituosa, ofensiva ao princípio constitucional da igualdade, até porque não se tem notícia de iniciativa similar para encerrar as atividades das boates, hotéis e motéis de luxo, onde, sabidamente, também há prática de sexo remunerado. A demanda dirige-se unicamente aos estabelecimentos do hipercentro, frequentados por pessoas de menor posse.

O fato de algum estabelecimento estar com o alvará de funcionamento vencido não autoriza a propositura de ação civil pública para defesa da coletividade.

Também não há como impor ao Município a obrigação de não fazer pelo fato de os hotéis/motéis estarem sendo frequentados por prostituas como locais de seus encontros, sob pena de aderirmos a uma discriminação das profissionais do sexo, cuja atividade, por si só, não constitui ilícito civil ou penal.

Portanto, não havendo prova de que, afora o aluguel dos quartos/apartamentos, os estabelecimentos requeridos estejam auferindo vantagens da prostituição, não há como interditar os estabelecimentos e muito menos proibir, por este motivo, o Município de expedir novas licenças.

Dispositivo

Diante do exposto, e considerando o mais que dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTE o pedido da presente ação CIVIL PÚBLICA proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em face do MARIA DE SOUZA S/A, ORGANIZAÇÕES GAM LTDA., PENSÃO MINEIRA LTDA., HOTEL PRIVÊ LTDA., HOTEL LÍRIO LTDA., REQUINTE HOTEL LTDA., STYLUS HOTEL LTDA., JOSÉ GONÇALVES e do MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE.

Não incidem custas e nem honorários advocatícios.

De acordo com entendimento do STJ, a sentença de improcedência de ação civil pública sujeita-se ao reexame necessário, aplicando-se a regra do art. 19 da Lei 4.717/1965 que disciplina a ação popular (REsp 1.108.542/SC, Rel. Ministro Castro Meira), razão pela qual, decorrido o prazo sem recursos voluntários, remetam-se os autos ao TJMG para o reexame necessário.

P. R. I.

Belo Horizonte, 20 de novembro de 2013.

 

Renato Luís Dresch

Juiz de Direito

 

CERTIDÃO

Certifico e dou fé que registrei eletronicamente esta sentença. Belo Horizonte, 20/11/2013.

 

Escrivã Judicial